Intervenção na ACE Guarulhos: decisão suspende eleição e pode violar autonomia associativa

Decisão que interrompeu o pleito da ACE Guarulhos pode ter produzido uma crise inexistente e comprometido a autonomia da associação

A eleição para a diretoria da Associação Comercial e Empresarial de Guarulhos (ACE Guarulhos), prevista para 28 de novembro de 2025, transformou‑se em uma disputa que extrapolou os limites da entidade e chegou com força ao Judiciário paulista. Em ação de obrigação de fazer movida pela empresa associada Controller Administradora de Condomínio Ltda., a 3ª Vara Cível de Guarulhos suspendeu o processo eleitoral e, dias depois, foi além: determinou a nomeação de um administrador provisório para assumir a gestão da associação, abrindo um flanco de críticas sobre possível intervenção indevida em uma entidade privada.

Inconformada, a ACE Guarulhos recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ‑SP) com um Agravo de Instrumento em que acusa a decisão de ter criado “instabilidade institucional artificial”, violado a autonomia associativa garantida pela Constituição e aplicado, de forma distorcida, o artigo 49 do Código Civil, que trata da figura do administrador provisório.

Da ação à suspensão das eleições

Na ação de obrigação de fazer ajuizada pela Controller, a autora apontou uma série de supostas irregularidades na condução do pleito 2026/2028: divergências entre Estatuto e Regimento Eleitoral, composição “parcial” da Comissão Eleitoral, desconfianças sobre a votação eletrônica e alegações de campanha antecipada da chapa da situação, com uso da estrutura da entidade.

Em 13 de novembro de 2025, o juiz deferiu tutela de urgência determinando a suspensão imediata da eleição e de todos os atos do processo eleitoral, sob pena de multa diária de R$ 30 mil. A fundamentação se apoiou na “probabilidade do direito” e em “indícios de irregularidades procedimentais capazes de viciar o pleito”, somados ao perigo de dano decorrente da proximidade da data do voto.

A ACE reagiu com Embargos de Declaração, argumentando que o quadro descrito pela autora estava superado ou incompleto: a integrante da Comissão Eleitoral apontada como parcial já teria renunciado; a chapa da própria autora fora homologada; e a associação teria oferecido uma solução alternativa — a realização de eleição presencial, com cédulas físicas e apuração manual, em conformidade com o Estatuto.

Embargos rejeitados e intervenção judicial concretizada

Ao julgar os Embargos, em 2 de dezembro de 2025, o juiz manteve integralmente a suspensão da eleição e determinou a nomeação de um administrador provisório para a ACE Guarulhos, com fundamento no artigo 49 do Código Civil.

A decisão fixou prazo de cinco dias para que as partes, em comum acordo, indicassem um nome “isento, com comprovada experiência em gestão associativa ou empresarial e sem qualquer vínculo com as chapas concorrentes ou com a atual gestão”. Se não houver consenso, caberá ao próprio juízo nomear o administrador, podendo inclusive consultar órgãos de classe e entidades de “notório saber” para auxiliá‑lo na escolha.

Não se trata, portanto, apenas de uma “possibilidade” abstrata de intervenção: a decisão institui concretamente uma administração judicial provisória, condicionando apenas a escolha do nome à tentativa prévia de acordo entre as partes. Na prática, abre-se espaço para que a presidência eleita pelos associados seja esvaziada em favor de um gestor indicado sob supervisão direta do Judiciário.

Nove tarefas, um interventor — e uma alternativa ignorada

O administrador provisório desenhado na decisão ganha poderes amplos, distribuídos em nove atribuições centrais:

  1. Assumir a gestão da ACE, garantindo continuidade das atividades essenciais e preservação do patrimônio;
  2. Destituir a atual Comissão Eleitoral e recompor um novo colegiado “independente e imparcial”;
  3. Elaborar e publicar um novo Regimento Eleitoral, alinhado ao Estatuto, prevendo votação presencial com fiscalização plena das chapas;
  4. Definir e divulgar novo calendário eleitoral, com prazos para todas as etapas do processo;
  5. Disponibilizar a lista completa de associados a todas as chapas, com dados de contato;
  6. Garantir a cessação de qualquer campanha irregular, inclusive uso da máquina institucional e das cores da entidade;
  7. Apresentar, em até 30 dias, um plano detalhado do novo processo eleitoral;
  8. Zelar pela legalidade, transparência, isonomia, impessoalidade e moralidade em todas as fases do pleito;
  9. Cumprir todas essas obrigações sob supervisão direta do juízo, sob pena de multa.

Para a ACE Guarulhos, esses nove pontos não exigiam a entrega da presidência a um interventor externo. A entidade sustenta, no Agravo, que o juiz poderia ter imposto essas mesmas providências como obrigações de fazer diretamente à própria associação, sob pena de, em caso de descumprimento, nomear apenas uma nova Comissão Eleitoral independente, sem afastar ou esvaziar a diretoria estatutária.

Agravo acusa “crise fabricada” e intervenção extra petita

No recurso apresentado ao TJ‑SP, a ACE afirma que o processo eleitoral estava “integralmente consolidado” quando veio a liminar: edital publicado, regimento divulgado, duas chapas homologadas — incluída a da autora da ação. A liminar teria interrompido esse fluxo natural, instaurando um quadro de instabilidade que não existia antes da decisão judicial.

O Agravo sustenta que:

  • o artigo 49 do Código Civil foi aplicado de forma deturpada, pois não havia vacância real ou renúncia coletiva da diretoria que justificasse um administrador provisório;
  • o risco de “acefalia” foi criado artificialmente pela própria suspensão judicial das eleições, já que o Estatuto prevê continuidade da diretoria até a posse dos novos eleitos;
  • nenhuma das partes pediu a nomeação de um administrador externo; ao contrário, o único pedido ligado à administração foi da própria ACE, que propôs manter o atual Presidente Executivo como gestor provisório;
  • ao determinar a indicação de administrador terceiro, o juiz teria decidido fora do pedido (decisão extra petita), violando os artigos 141 e 492 do CPC, além de fazê‑lo sem prévio contraditório específico, em afronta aos artigos 9º e 10 do Código de Processo Civil.

O recurso também acusa a decisão de se apoiar em provas frágeis — principalmente prints de WhatsApp, postagens em redes sociais e percepções subjetivas — sem qualquer perícia, auditoria técnica do sistema de votação ou apuração mais profunda.

A ACE insiste que nenhuma irregularidade estrutural foi comprovada: não houve indeferimento de chapa, manipulação de regras a favor de um grupo ou demonstração técnica de insegurança do sistema eletrônico. E lembra que ofereceu, antes da decisão nos embargos, a alternativa de uma eleição presencial, fiscalizada e manual, que afastaria, de uma vez, todas as dúvidas levantadas sobre a votação virtual.

Especialista vê extrapolação do pedido e “medida drástica e incabível”

A redação ouviu o professor Cristiano Medina da Rocha, colunista da Folha, especialista em Constitucional e mestre em Direito Processual, sobre a decisão que impõe um administrador provisório à ACE Guarulhos. Para ele, a intervenção judicial na presidência e na administração da entidade é “medida drástica e incabível” no contexto de uma ação cujo objeto declarado é apenas a regularização do processo eleitoral, e não o controle de uma suposta gestão temerária.

Medina recorre a um paralelo conhecido de processualistas: o princípio da correlação no processo penal. “No processo penal, o juiz não pode condenar alguém por fato ou crime diverso daquele descrito na denúncia. O espelho disso, no processo civil, é o princípio da congruência: o magistrado está vinculado ao pedido e à causa de pedir. Aqui, o que está em jogo é o saneamento do rito eleitoral, não a intervenção na presidência nem um juízo de mérito sobre administração temerária”, afirma.

Segundo o professor, ao transformar o rol de nove tarefas em justificativa para afastar, na prática, a direção estatutária e entregar a gestão a um terceiro, a decisão desloca o eixo da demanda.

“Todos esses nove pontos — recompor a Comissão Eleitoral, ajustar o regimento, redefinir calendário, abrir lista de associados, reprimir campanha irregular, detalhar um plano em 30 dias, observar princípios de isonomia e transparência — poderiam ter sido impostos como obrigações à própria ACE, sob pena de, em caso de descumprimento, o juiz nomear apenas uma nova Comissão Eleitoral independente. Afastar a diretoria e colocar um administrador provisório é mudar o objeto do jogo no meio do processo”, resume Medina.

Ele também destaca que a autora da ação não pediu a nomeação de administrador externo. “Se a própria parte que se diz prejudicada não requereu intervenção na presidência, mas apenas questionou as regras do pleito, a decisão de impor um administrador judicial caminha perigosamente para fora da moldura do pedido. É exatamente o tipo de situação que a doutrina descreve como violação à congruência”, diz.

Dano inverso, exposição pública e crise reputacional

Outro ponto que preocupa a ACE e é sublinhado no Agravo é o dano inverso causado pela decisão. Antes da tutela, a associação funcionava com diretoria em exercício e processo eleitoral em marcha. Com a suspensão do pleito e a sombra da intervenção, ter‑se‑ia instalado um cenário de insegurança: colaboradores temendo por salários, parceiros desconfiados da estabilidade da entidade e associados expostos a uma narrativa pública de crise.

A repercussão foi imediata em portais locais e redes sociais, com manchetes que falavam em “afastamento da diretoria” e “intervenção na ACE”, ainda que a decisão não decretasse formalmente a destituição dos dirigentes. O Agravo acusa a autora da ação e seus apoiadores de instrumentalizarem a liminar como peça de propaganda eleitoral, comemorada como “vitória judicial” em postagens e vídeos.

Para a ACE, a tutela provisória, que deveria proteger a lisura do pleito, acabou por contaminá‑lo ainda mais, alimentando narrativas de irregularidade e fragilizando a imagem de uma entidade que há décadas atua como referência do empresariado local.

TJ‑SP terá de arbitrar os limites da mão do Estado

No Agravo, a ACE pede ao Tribunal de Justiça a concessão de efeito suspensivo ativo para:

  • suspender de imediato todos os efeitos da decisão que mantém a suspensão do pleito e determina a nomeação de administrador provisório;
  • vedar expressamente a indicação de administrador externo à entidade;
  • assegurar a continuidade da atual diretoria até a conclusão válida das eleições;
  • determinar a retomada imediata do processo eleitoral, preferencialmente em formato presencial.

O caso, embora tenha origem em uma disputa local pela direção de uma entidade de classe, toca em temas sensíveis e estruturais: até onde pode ir o Judiciário ao interferir em conflitos internos de associações privadas? Em que medida uma tutela de urgência, baseada em indícios e suspeitas, pode suspender um processo eleitoral inteiro e instaurar uma administração judicial paralela?

Enquanto o TJ‑SP não decide, a ACE Guarulhos segue sustentando que não foi a associação — nem o seu processo eleitoral — que criou a crise em torno da sucessão interna, mas sim a própria decisão que, ao suspender o pleito e impor um administrador provisório, teria ido além do que foi pedido, além do que está provado e, talvez, além do que a autonomia associativa permite.

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Por Redação Folha de Guarulhos.

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