O Princípio de Tudo: Da Energia Primordial ao Ser

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão científico-filosófica acerca da origem do universo e de tudo o que nele existe. Partindo da cosmologia contemporânea — que reconhece um ponto de energia densa e infinitamente quente como a origem de toda matéria, espaço e tempo — articula-se um diálogo com as tradições filosóficas que, ao longo dos séculos, buscaram compreender a unidade fundamental do ser. Através da interlocução entre ciência, metafísica e espiritualidade, sustenta-se que tudo, absolutamente tudo, provém de um mesmo princípio criador, o qual pode ser descrito como energia primordial, fundamento ontológico ou fonte eterna de vibração.

1. Introdução

Desde que o ser humano ergueu os olhos ao céu e formulou a mais antiga das perguntas — “de onde viemos?” — busca-se compreender a origem do universo e da própria existência. Se antes a explicação se abrigava no mito e na fé, a ciência contemporânea nos oferece uma narrativa igualmente grandiosa: tudo o que existe teve origem em um ponto inicial de energia concentrada, um estado de densidade e temperatura absolutas, conhecido como singularidade. O presente artigo propõe refletir sobre essa origem última, conectando a física moderna com a filosofia clássica e espiritualidades ancestrais, reconhecendo que o saber, em sua totalidade, aponta para uma mesma verdade: somos feitos da mesma substância, filhos de um mesmo princípio criador.

2. O Big Bang e a unidade do cosmos

A cosmologia moderna, sobretudo após a formulação da Teoria do Big Bang, afirma que o universo teve início há cerca de 13,8 bilhões de anos, a partir de uma expansão violenta de um ponto de energia extremamente denso e quente. Não se trata de uma explosão comum, mas da criação do espaço e do tempo. Antes desse momento, segundo as equações da relatividade geral de Einstein, não havia tempo, nem espaço — nem “antes”, nem “fora”. O físico Stephen Hawking foi um dos que defenderam que perguntar “o que havia antes do Big Bang” seria como indagar “o que existe ao norte do Polo Norte”. O tempo e o espaço são dimensões que nasceram junto com o universo, e não há sentido em projetá-los para “fora” de sua origem. Esse ponto original, portanto, não estava em lugar algum, pois era o início de todos os lugares. E esse “algo” que ali existia — uma condição de pura energia — não era ainda matéria, nem forma, nem lei, mas potencial absoluto.

3. Energia: o fundamento do real

A física moderna reconhece que tudo o que existe pode ser reduzido, em última instância, a energia. A célebre equação de Einstein, E=mc², revela que matéria e energia são expressões distintas de uma mesma substância. O que chamamos de “coisas” — planetas, pedras, corpos — são apenas energia condensada em diferentes estados. Segundo David Bohm, físico contemporâneo e defensor da ideia de um “campo quântico implicado”, o universo visível é apenas a manifestação superficial de uma ordem mais profunda, invisível, onde tudo está conectado. Essa energia primordial seria o pano de fundo invisível do qual surgem todas as formas. A energia, portanto, não é apenas uma propriedade física, mas o próprio ser em sua expressão mais essencial.

4. A intuição filosófica da unidade do ser

Muito antes da ciência moderna, os filósofos já intuíram que tudo o que existe provém de uma mesma origem: Anaximandro falava do ápeiron, o indeterminado, fonte de todas as coisas. Heráclito enxergava no fogo a metáfora da energia que tudo transforma. Platão e Plotino postulavam a existência de um Uno absoluto, de onde emana toda realidade. Espinosa, já no século XVII, identificava Deus com a Natureza — um único ser do qual tudo deriva. Na filosofia cristã, Santo Agostinho afirmava que o tempo só existe porque Deus criou o mundo com começo e fim, e Tomás de Aquino via em Deus o “ato puro”, aquilo que é plenamente ser e não pode não ser — o que hoje poderíamos associar à ideia de uma energia eterna e ativa.

5. Somos feitos da mesma substância

Essa percepção, hoje sustentada tanto por cálculos físicos quanto por intuições filosóficas e espirituais, nos leva a uma conclusão profunda: tudo — absolutamente tudo — provém de um mesmo princípio: uma energia criadora, primordial, que vibra e se manifesta em formas diversas. Estrelas, planetas, seres humanos, árvores, bactérias, pensamentos, emoções — tudo é expressão dessa mesma origem. A frase do astrônomo Carl Sagan, “somos poeira das estrelas”, é mais do que poética: é literal. Os elementos que compõem nosso corpo foram forjados no coração de estrelas mortas há bilhões de anos.

6 – As Cosmogonias como Linguagem da Criação

Ao longo da história, os povos da Terra procuraram compreender a origem de tudo: do mundo, da vida, da consciência, do tempo, da morte, e da própria existência. De diferentes formas, em todos os continentes e eras, elaboraram narrativas fundantes, que não são apenas explicações, mas expressões do sagrado.

As cosmogonias — mitos de criação — não apenas explicam o nascimento do universo, mas organizam a vida, o tempo, o espaço e a comunidade. São palavras fundadoras, que instauram sentidos e refletem a visão de mundo de quem as cria.

Mais do que relatos míticos, essas cosmogonias carregam verdades espirituais, éticas e filosóficas. Revelam como cada cultura vê o ser humano em relação à natureza, à divindade, ao cosmos. Em algumas, o mundo é obra de um Deus criador; em outras, é fruto do desejo, do canto, do sonho ou do sacrifício. Em todas, há uma sabedoria que convida à contemplação.

6.1 – O Universo como Unidade Vibrante

A ciência moderna, sobretudo após a física quântica e a cosmologia contemporânea, passou a reconhecer que o universo não é feito apenas de matéria e energia, mas também de informação, vibração e interconexão.

A teoria do Big Bang aponta para um ponto inicial: uma singularidade densa e infinitamente quente, onde não havia tempo, nem espaço, nem partículas. A partir dessa origem, o cosmos expandiu-se, organizando-se em galáxias, estrelas, planetas — e, em um deles, a vida consciente.

Essa mesma realidade foi intuída por místicos, xamãs e filósofos: de Heráclito a Bohm, de Anaximandro a Fritjof Capra, muitos sustentam que tudo é expressão de um mesmo princípio criador, que pode ser chamado de energia, verbo, logos, sopro, tao, vibração ou espírito.

6.2 – Cosmogonias da Humanidade: Catálogo Global de Mitos de Criação

Ao longo das culturas humanas, as cosmogonias se revelam como o fio comum que une povos distintos em uma mesma busca: compreender o início de todas as coisas. Neste item, apresenta-se um levantamento sem precedentes de distintos mitos de criação, organizados de forma clara, didática e respeitosa com a tradição de cada povo.

Essas cosmogonias foram reunidas a partir de tradições religiosas, filosóficas, espirituais e indígenas de todos os continentes. Algumas são narrativas sagradas sistematizadas em escrituras; outras, mitos orais passados por gerações, preservados por xamãs, anciãos, sacerdotes ou guardiões da memória.

Cada item do catálogo representa uma cosmovisão única, com origem geográfica, simbólica ou histórica específica.

6.3 – Cosmogonias das Grandes Religiões do Mundo

Ao longo da história, as grandes religiões da humanidade desenvolveram narrativas estruturadas sobre a origem do universo, da vida e do ser humano. Tais cosmogonias não se limitam a explicações físicas, mas oferecem também visões éticas, morais e existenciais sobre o propósito da criação.

Essas tradições, transmitidas por livros sagrados, rituais e escolas de pensamento, influenciaram bilhões de pessoas e moldaram civilizações inteiras. Sejam revelações, símbolos, alegorias ou parábolas, os mitos de criação religiosos formam o núcleo do imaginário de fé de seus povos.

6.3.1 – Cosmogonia Cristã

A cosmogonia cristã, registrada no livro do Gênesis, narra que Deus criou o universo em seis dias e descansou no sétimo. Cada ato criativo se deu por meio da palavra: “Disse Deus: faça-se…”.

Do nada (ex nihilo), surgiram a luz, os céus, a terra, os astros, as águas, os animais e, por fim, o ser humano — criado à imagem e semelhança divina. O homem é feito do barro e animado pelo sopro de vida. A criação é boa e ordenada, e o homem é chamado a cuidar do jardim (Éden).

6.3.2 – Cosmogonia Judaica

A tradição judaica compartilha o Gênesis com o cristianismo, mas com ênfase na aliança entre Deus e o povo. A criação é vista como a primeira manifestação da Torá, que já existia antes do mundo.

Na mística cabalística, a criação é descrita como um ato de contração divina (Tsimtsum), seguido de emanações (Sefirot) que formam o mundo. A luz original é fragmentada, e o papel do ser humano é restaurar essa luz (Tikun Olam).

6.3.3 – Cosmogonia Islâmica

No Alcorão, Deus (Allah) cria os céus e a terra em seis “dias” (períodos) com sabedoria e ordem. Basta que Ele diga “Seja”, e é.

O universo é sinal (āyah) do poder divino. O ser humano é criado de barro e recebe o sopro do espírito. A criação é boa, e o homem é vice-regente de Deus (khalifa) sobre a terra.

6.3.4 – Cosmogonia Hindu

Diversas tradições coexistem:

       •      Nos Vedas, o cosmos nasce do sacrifício do ser primordial (Purusha).

       •      Nos Puranas, Brahma nasce do lótus do umbigo de Vishnu e molda o mundo.

       •      A dança de Shiva (Nataraja) representa o ciclo de criação e destruição.

       •      O universo é cíclico, com eras (yugas) que se repetem infinitamente.

6.3.5 – Cosmogonia Budista

O budismo não possui um criador. O universo surge e se dissolve ciclicamente conforme o karma coletivo dos seres.

O Aggañña Sutta descreve o surgimento do mundo a partir da decadência de uma luz cósmica original. Os seres se densificam e surgem o tempo, o espaço, a diferenciação e o desejo. A ignorância é a raiz da existência cíclica (saṃsāra).

6.3.6 – Cosmogonia Espírita (Kardecista)

Segundo o Espiritismo, Deus é a inteligência suprema e causa primária de todas as coisas. A criação é contínua e eterna.

O universo é composto de espírito e matéria. Deus cria os espíritos simples e ignorantes, que evoluem por meio de múltiplas reencarnações. Os mundos materiais são degraus dessa jornada evolutiva.

6.3.7 – Cosmogonia Zoroastriana

Ahura Mazda cria o universo em sete etapas, mas sua obra é ameaçada por Angra Mainyu (princípio do mal). O mundo torna-se campo de batalha entre luz e trevas.

Ao fim, haverá uma renovação (frashokereti): o bem triunfará, e o mundo será purificado com fogo espiritual.

6.3.8 – Cosmogonia Xintoísta (Japão)

O casal divino Izanagi e Izanami agitam o mar primordial com uma lança. Dela, gotas formam as ilhas do Japão. Eles geram os deuses, incluindo Amaterasu (deusa do sol).

O mundo é visto como sagrado. A natureza é habitada por kami (espíritos divinos) e a harmonia depende do respeito aos rituais.

6.3.9 – Cosmogonia Taoísta (China)

O Tao (Caminho) é o princípio eterno e indefinível. Do Tao surge o Um, que gera o Dois (Yin e Yang), que gera o Três, e então os Dez Mil Seres.

O universo é criação espontânea, sem um agente pessoal. Tudo surge por equilíbrio dinâmico e se transforma eternamente.

6.3.10 – Cosmogonia Jainista

Não há criador. O universo é eterno e se move em ciclos ascendentes e descendentes. Tudo é regido por leis naturais e morais.

A alma (jiva) busca libertar-se da matéria (ajiva) e atingir o estado de perfeição (moksha). A criação não é evento, mas processo constante.

6.3.11 – Cosmogonia Sikh

Deus (Waheguru) cria o universo com o som primordial (shabad). A criação é expressão de sua vontade e amor.

Tudo é Uno, e a alma é reflexo do divino. O mundo existe para que o ser se una ao seu Criador por meio da retidão, serviço e devoção.

6.3.12 – Cosmogonia Bahá’í

Deus cria o mundo por amor. A criação é contínua e cada era recebe uma “Manifestação” — como Moisés, Buda, Jesus, Maomé e Bahá’u’lláh.

O universo é uma escola de aperfeiçoamento espiritual. A ciência e a fé devem caminhar juntas como expressões complementares da verdade.

6.3.13 – Cosmogonias Esotéricas e da Nova Era

Diversas correntes modernas falam de uma “Fonte”, “Consciência Cósmica” ou “Campo Unificado” que origina tudo por vibração, luz ou intenção.

A criação é entendida como emanação de energia consciente, em planos de realidade. O ser humano é parte ativa dessa criação contínua.

6.4 – Cosmogonias por Região Geográfica

Após o estudo das religiões mais difundidas, voltamo-nos agora para as cosmogonias nascidas das tradições orais e espirituais de povos originários, organizadas por região geográfica. Esses mitos revelam a maneira única como cada cultura entendeu a origem do mundo a partir de seu ecossistema, seus símbolos, ritmos e ancestralidade.

6.4.1 – África

A África, considerada o berço da humanidade, apresenta uma pluralidade impressionante de cosmogonias. Em geral, a criação é entendida como uma expressão viva do equilíbrio entre os elementos, das forças espirituais da natureza, da música, do verbo e dos gestos rituais.

Não raramente, os deuses moldam o mundo com barro, sopro, dança, palavras ou lágrimas. Muitos mitos africanos se apoiam no princípio do dualismo complementar (masculino/feminino, céu/terra, luz/trevas) e na centralidade da comunidade e dos ancestrais.

Algumas Cosmogonias Africanas:

       •      Dogon (Mali): O mundo surgiu de um ovo cósmico giratório criado por Amma. Quando o ovo se rompeu, libertou a ordem cósmica, os elementos, o tempo e os primeiros seres gêmeos. O Nommo, ancestral aquático, organiza o mundo com sua fala sagrada.

       •      Iorubá (Nigéria): Olodumaré, Deus supremo, criou o universo e delegou a Oxalá a tarefa de moldar os seres humanos a partir do barro, soprando-lhes a vida. A criação se relaciona à ordem de Ifá (oráculo) e ao equilíbrio entre os orixás.

       •      Banto (África Central): O ser supremo Nzambi ou Mulungu criou o mundo com a ajuda dos ancestrais e dos elementos. A criação é sustentada por música, dança e moralidade.

       •      Ashanti (Gana): Nyame, deus celeste, criou o céu, a terra e os homens. Num tempo mítico, céu e terra eram unidos, mas foram separados após o desrespeito humano. O retorno à unidade depende da ética e do ritual.

       •      Zulu (África Austral): Um caniço cresceu do vazio, e dele nasceu Unkulunkulu, que criou os seres vivos, os rios, o céu e a terra. O mito expressa que tudo nasce do úmido e do verde — da semente primordial.

       •      San (Kalahari): O mundo foi feito pelo sol, que era um ser humano. Através de contos e pinturas, o mito é transmitido com profunda ligação com os animais e as estrelas.

       •      Fon (Benim): Mawu-Lisa, deuses gêmeos, criaram o mundo com os princípios do calor e do frescor, da dualidade e do equilíbrio. O mundo foi moldado no corpo da serpente Aido-Hwedo, que sustenta a terra.

       •      Baganda (Uganda): Kintu, o primeiro homem, casa-se com a filha do deus celeste Ggulu e traz os elementos da criação à terra. O mito gira em torno de alianças e tabus sagrados.

       •      Herero (Namíbia): Mukuru é o deus supremo. O mundo nasceu da terra e do fogo, e os ancestrais guiam o ciclo da vida.

       •      Dinka (Sudão do Sul): Nhialic criou os humanos do barro e ensinou-lhes a cultivar. A separação entre deuses e homens veio após uma falha ritual.

6.4.2 – Cosmogonias das Américas

O continente americano é uma tapeçaria viva de mitos de criação. Desde as florestas boreais até as selvas tropicais, passando pelas planícies, desertos, cordilheiras e arquipélagos, os povos originários das Américas desenvolveram cosmovisões que expressam profunda conexão com a natureza, com os ciclos da vida, com os animais e com o céu estrelado.

A criação, para muitos desses povos, não foi um evento único, mas um processo contínuo, cíclico, que pode ser renovado ou desfeito conforme a ação dos seres humanos e os ensinamentos dos ancestrais.

6.4.2.1 – América do Norte

       •      Iroqueses: A Mulher-do-Céu caiu do mundo superior sobre o casco de uma tartaruga que boiava nas águas primordiais. Animais mergulharam para trazer lama, e com ela se criou a terra.

       •      Hopi (sudoeste dos EUA): Os mundos foram criados e destruídos sucessivamente por causa do esquecimento dos ensinamentos sagrados. A aranha Sótuknang teceu a realidade com fios do Criador.

       •      Navajo: Quatro mundos precederam o atual. Os primeiros seres emergiram da escuridão, da água, do barro e, por fim, da luz. Os humanos foram feitos a partir de espigas de milho, com o sopro divino.

       •      Lakota (Sioux): O universo é obra do Grande Mistério (Wakan Tanka). A tartaruga formou a terra; os astros e os animais são parentes espirituais dos homens.

       •      Cherokee: A terra foi retirada do oceano por um besouro. Era inicialmente plana e mole. Quatro cordas a sustentavam presa ao céu.

       •      Tlingit (Alasca): O corvo roubou a luz para libertar o mundo da escuridão. Criou montanhas e rios, moldando tudo com engenhosidade.

       •      Inuítes: Sedna, a deusa do mar, foi traída pelo pai e atirada ao oceano. Seus dedos cortados transformaram-se nos animais marinhos que sustentam a vida. O oceano é matriz de todos os seres.

       •      Mi’kmaq (Canadá): Glooscap, herói cultural, moldou os humanos da árvore de salgueiro e os ensinou a viver em harmonia com a terra.

       •      Yurok (Califórnia): Os deuses criaram a ordem natural para restaurar a harmonia após um tempo de desordem. As estrelas são olhos de ancestrais.

       •      Cree (Canadá): O mundo é sustentado por uma tartaruga que flutua nas águas do tempo. O Criador sopra o espírito e inicia os ciclos.

6.4.2.2 – Mesoamérica (México, Guatemala, América Central)

       •      Maia: O universo passou por várias tentativas de criação. Os primeiros humanos foram feitos de barro e de madeira, mas não tinham alma. Somente com o milho sagrado, alimento divino, foi criada a humanidade verdadeira.

       •      Asteca (Mexica): O mundo passou por cinco sóis (eras). Cada um foi destruído por um cataclismo. No atual, o deus Nanahuatzin se sacrificou para tornar-se o Sol. Os humanos foram criados do sangue dos deuses e da farinha de ossos ancestrais.

       •      Zapoteca: A terra surgiu dos sonhos dos deuses. Eles emergiram da água e organizaram o mundo com símbolos sagrados e ciclos astrais.

       •      Mixteca: O casal primordial nasceu das nuvens. Criaram o fogo, os códices, o tempo e os elementos. A vida humana surgiu da terra sagrada.

       •      Totonaca: Os deuses moldaram os homens com flores e barro, mas eles não sabiam falar. Foi o trovão quem ensinou a linguagem e o canto.

       •      Mixe: Os seres humanos nasceram do lamento das pedras. Cada montanha guarda um espírito criador adormecido.

       •      Maya K’iche’ (Popol Vuh): Antes da criação, tudo era céu e mar. Os deuses Tepeu e Gucumatz criaram a terra, o céu, os animais e os humanos de milho. É um dos mais belos textos cosmogônicos da humanidade.

       •      Tlapaneca: O mundo surgiu quando um raio atingiu o silêncio. Desse encontro nasceram os primeiros espíritos que moldaram a terra.

       •      Lacandón: O deus Hachakyum teceu a selva com seu sopro e criou os rios com lágrimas da lua. A floresta é templo e corpo sagrado.

6.4.2.3 – América do Sul

A América do Sul é um verdadeiro continente mítico. Seus povos ancestrais — dos Andes à floresta amazônica, das terras frias da Patagônia aos cerrados do Brasil central — desenvolveram cosmogonias profundas e poéticas, enraizadas no ritmo da natureza, nos ciclos da chuva e do fogo, nos cantos da floresta e no silêncio das montanhas.

A criação, para esses povos, raramente é um evento único: ela é contínua, ritual, renovável. O mundo nasce e renasce a cada cerimônia, a cada palavra sagrada, a cada sonho do pajé.

Povos Andinos

Quéchuas (Peru/Bolívia): O universo foi dividido em três planos: Hanan Pacha (céu), Kay Pacha (terra) e Ukhu Pacha (submundo). Pachamama é a Mãe Terra; Inti, o deus sol; Viracocha, o criador original, emergiu do lago Titicaca e ordenou o mundo com sua palavra.

Aymaras (Bolívia): O mundo nasceu da união de duas energias complementares: chacha (masculino) e warmi (feminino). A vida veio das montanhas e da água.

Q’ero (Peru): O mundo foi sonhado por Aluna, a Mãe do Mundo, e tecido com fios de luz. O tempo é um ciclo que gira com as montanhas sagradas.

Chachapoya (Peru): As nuvens deram à luz os primeiros humanos. Os deuses das alturas moldaram as neblinas e os espíritos das árvores.

Povos da Bacia Amazônica

Yanomami (Brasil/Venezuela): Omama criou a terra e os rios com sua lança. Seus filhos, os xapiripë, são espíritos dançarinos que sustentam o mundo.

Tukano (Brasil/Colômbia): A Via Láctea é a trilha do peixe ancestral. Do centro da água sagrada surgiu a canoa dos ancestrais que povoaram o mundo.

Desana (Brasil/Colômbia): O mundo nasceu do leite da Via Láctea. Os rituais garantem que a criação continue girando em harmonia.

Kaxinawá (Acre/Peru): A jiboia cósmica dançou no céu e moldou os rios. Seus olhos se tornaram estrelas.

Ashaninka (Peru/Brasil): O mundo foi moldado com a fumaça da ayahuasca. A palavra e o canto curam e recriam a realidade.

Yawanawá (Acre): A criação é uma canção eterna. A floresta foi tecida com som e luz, e os homens são feitos de memória ancestral.

Sharanahua (Peru): A terra nasceu de uma lágrima de sapo sagrado. O céu é uma cabaça virada, guardando os sonhos.

Mayoruna (Brasil/Peru): A floresta foi formada com o sopro de uma mulher-cobra. Os homens surgiram das folhas que ela espalhou.

Piro (Peru): O primeiro homem sonhou que caminhava. Ao acordar, era de barro e tinha fome: assim nasceu o mundo.

Apurinã (Acre): A palavra moldou o universo. As folhas têm alma, e o tempo canta com os rios.

Jaminawa (Brasil/Peru): A criação é escrita com fumaça. Cada ritual é uma página do mundo.

Povos do Cone Sul e Pampas

Mapuche (Chile/Argentina): O universo nasceu da luta entre as serpentes Kai Kai (água) e Tren Tren (terra). O equilíbrio entre elas gera a vida.

Selk’nam (Terra do Fogo): A árvore cósmica conectava o céu à terra. Ao ser cortada, espalhou as estrelas e criou a noite.

Yámana (Chile): As ilhas foram geradas pelos passos de um ancestral que atravessava o mar sobre as ondas.

Wichí (Argentina): O Grande Pássaro bateu as asas e criou os ventos e os vales. A criação é um sopro sagrado.

Chaná (Uruguai/Argentina): As palavras nasceram com o som das ondas. O mundo é o eco de uma conversa divina entre céu e água.

Charrua (Uruguai): O mundo foi criado por cavalos celestes que galoparam o vazio, traçando a terra com suas patas.

6.4.3 – Cosmogonias da Europa

Antes da expansão do cristianismo, a Europa era um mosaico de culturas espirituais profundamente conectadas aos ciclos da natureza, à fertilidade da terra, aos astros e aos mitos heroicos. Suas cosmogonias eram transmitidas por bardos, xamãs, sacerdotes druídicos e contadores de histórias, e permanecem até hoje como fontes poderosas de imaginação e identidade.

Em geral, a criação na Europa antiga não ocorre a partir do nada absoluto, mas de uma substância primordial — o caos, o abismo, o gelo, o fogo, o mar — de onde emergem deuses e forças primordiais que moldam o cosmos com luta, sacrifício e organização simbólica dos elementos.

Mitologia Grega

Hesíodo (Teogonia): No princípio, havia o Caos. Dele surgem Gaia (Terra), Tártaro (abismo), Eros (desejo), Nix (Noite) e Urano (Céu). A união entre Urano e Gaia gera os titãs, ciclopes e hecatônquiros. Cronos destrona o pai e dá origem à era dos deuses olímpicos, liderados por Zeus.

Mitologia Romana

Adota em grande parte a cosmogonia grega, com nomes latinos. No início havia o Caos, que se organizou em elementos — Terra, Mar, Céu. Os deuses moldam o homem com barro, e Prometeu lhe dá o fogo. A ordem é garantida por Júpiter (Zeus romano).

Mitologia Nórdica (Vikings)

O mundo surgiu do abismo Ginnungagap, entre o fogo de Muspelheim e o gelo de Niflheim. Da fusão surgiu o gigante Ymir, cuja carne formou a terra, seu sangue os oceanos, seus ossos as montanhas. Os deuses Odin, Vili e Vé criaram o homem e a mulher a partir de troncos de árvores.

Mitologia Celta (Irlanda, Gália, Bretanha)

A criação é cíclica, regida por deuses da natureza, como Danu, Brigid e Lugh. O universo é sustentado pela Árvore da Vida. A terra foi moldada com palavras de poder e com o sangue derramado nos sacrifícios sagrados. Os Tuatha Dé Danann, povo divino, ensinam os caminhos da criação por meio de magia e música.

Mitologia Eslava (Rússia, Polônia, Bálcãs)

O mundo nasceu da união de Perun (deus do trovão) e Veles (deus das profundezas). Um pato mergulhou no oceano primordial e trouxe lama do fundo. Essa lama, colocada sobre o dorso de uma tartaruga cósmica, se transformou na terra. A luta entre céu e submundo organiza os ciclos naturais.

Mitologia Báltica (Lituânia, Letônia, Estônia)

Dievas, o deus supremo, moldou o universo com a ajuda de Laima (destino) e Perkūnas (trovão). O mundo se estrutura em camadas cósmicas ligadas pela árvore do mundo. Os astros são seres vivos e a luz é uma dádiva divina que vence a escuridão a cada ciclo.

Mitologia Basca (Euskal Herria)

Mari, a deusa-mãe, habita cavernas e controla os elementos. O mundo surgiu de sua respiração, que equilibra céu e terra. Ela regula as estações e as forças invisíveis. A criação é constante e viva.

Mitologia Fenícia (influência mediterrânea)

O cosmo surgiu do Ovo Cósmico, gerado pelas águas primordiais. Dele vieram o tempo e o espírito do ar. Os deuses moldaram os céus e a terra a partir do corpo do primeiro ser, como em mitos orientais.

6.4.4 – Cosmogonias da Ásia

A Ásia abriga algumas das mais antigas e complexas visões de criação da humanidade. Aqui nasceram as grandes religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo), os sistemas de sabedoria da Índia (Hinduísmo, Budismo, Jainismo, Sikhismo), e as escolas filosóficas e místicas do Oriente como o Taoismo, Confucionismo e Xintoísmo.

Nessa região, a cosmogonia frequentemente se confunde com cosmolatria: o universo não é apenas criado, ele é sagrado, animado, regido por leis espirituais e simbólicas. A criação pode acontecer por meio do desejo divino, da dança cósmica, da emanação da vacuidade, da expansão da consciência ou da vibração primordial.

6.4.4.1 – Oriente Médio (inclui Mesopotâmia, Pérsia e Levante)

Suméria: No princípio havia Nammu, o oceano primordial. Dela nasceu o céu (An) e a terra (Ki). O deus Enlil separa os dois e molda os homens a partir do barro para servirem os deuses.

Acádia/Babilônia (Enuma Elish): Marduk derrota Tiamat, deusa do caos, e com seu corpo forma o céu e a terra. A criação é resultado da vitória da ordem sobre o caos.

Mitanni e Cananeus: Deuses ancestrais regem os elementos e o tempo. A criação surge por meio do sacrifício e do nascimento das estrelas.

Pérsia (Zoroastrismo): Ahura Mazda cria o mundo com sete atos, mas é imediatamente desafiado por Angra Mainyu. A criação é um campo de luta moral e espiritual.

Mitologia Hebraica: Já abordada na seção 6.3, com o Gênesis como base do relato cosmogônico.

6.4.4.2 – Sul da Ásia (Índia, Nepal, Sri Lanka, Bangladesh)

Hinduísmo: Diversas visões coexistem. Em uma delas, o ser primordial (Puruṣa) é sacrificado pelos deuses, e de seus membros surgem as castas, os elementos e os astros. Em outra, o universo nasce do lótus que brota do umbigo de Vishnu. Shiva, com sua dança (Tandava), destrói e recria os ciclos cósmicos.

Jainismo: O universo é eterno, sem criador. Existe por meio da interação entre jiva (alma) e ajiva (matéria). O tempo se move em ciclos descendentes e ascendentes, como uma roda.

Budismo: A criação não é central. O Aggañña Sutta descreve um universo que se manifesta ciclicamente. Os seres surgem por força do karma coletivo, e a ignorância é a origem da existência.

Sikhismo: Deus (Waheguru) cria o universo com o som primordial (shabad). O cosmos é uma emanação divina e tudo vibra com Sua presença. A criação não é pontual, mas contínua.

6.4.4.3 – Sudeste Asiático (Tailândia, Camboja, Laos, Mianmar, Indonésia, Malásia, Filipinas)

Mitologia Khmer (Camboja): O deus criador Preah Thong casa-se com uma deusa nagini e conquista a terra ao receber um punhado de areia e uma lança sagrada.

Mitologia Javanesa (Indonésia): O mundo foi criado por Batara Guru, que desceu do céu com um arco-íris e plantou uma árvore cósmica de onde tudo brotou.

Mitologia Batak (Sumatra): O deus Mula Jadi Na Bolon criou o céu e seus filhos, que povoaram os diversos planos do universo.

Mitologia Tagalog (Filipinas): No princípio havia o Céu (Langit) e o Mar (Dagat). Do conflito entre os dois, surgiram os deuses e o mundo.

6.4.4.4 – Leste Asiático (China, Japão, Coreia)

Taoismo: Já tratado na seção 6.3. O Tao é o princípio supremo e indefinível, que dá origem ao Um, ao Yin e Yang, e aos Dez Mil Seres. A criação é fluxo.

Xintoísmo (Japão): Já abordado. O casal Izanagi e Izanami cria as ilhas do Japão e os deuses, após agitarem as águas do caos com uma lança.

Mitologia Chinesa popular: Pangu, o gigante primordial, separa o céu da terra com seu corpo. Morre e seu corpo vira os elementos do mundo.

Confucionismo: Embora não seja uma religião criacionista, reconhece o Céu (Tian) como uma força ordenadora moral do universo.

6.4.4.5 – Ásia Setentrional e Central (Sibéria, Mongólia, Cáucaso, Ásia Central)

Mitologia Mongol: O céu eterno (Tenger) cria o mundo por meio de emanações cósmicas. Os xamãs invocam os deuses ancestrais para sustentar o ciclo da criação.

Mitologia Tuvana: Um lobo sagrado uiva e seu som estrutura o espaço. A montanha central é o eixo do mundo.

Mitologia Buriat: Um cisne branco sobrevoa o vazio e põe três ovos: céu, terra e espírito. Cada um dá origem a uma camada da realidade.

Mitologia Nenets (Sibéria): A rena divina caminhou sobre as águas congeladas e desenhou o mundo com seus cascos.

Mitologia Chukchi (Sibéria Oriental): A baleia ancestral mergulha e, ao bater a cauda, forma as ilhas e a terra firme.

Mitologia Yakut: O céu envia o pássaro celeste para depositar ovos de luz sobre a tundra. Eles eclodem em estrelas, árvores e humanos.

6.4.5 – Cosmogonias da Oceania

As cosmogonias da Oceania são profundamente ligadas ao oceano, ao vento, às estrelas e às linhagens ancestrais. Muitas dessas tradições explicam a criação como um processo contínuo, no qual o mundo visível é constantemente renovado por meio de rituais, cantos e narrativas sagradas.

A ideia de “Sonhar” (Dreaming, nos mitos aborígenes) ou de “Navegar entre os mundos” (nas tradições polinésias) são metáforas centrais que revelam um universo onde tempo, espaço e espírito se entrelaçam. O mundo foi moldado não só pela ação de deuses, mas pelas trajetórias de ancestrais mitológicos cujos feitos deixaram marcas na geografia e na cultura.

6.4.5.1 – Austrália (Aborígenes Australianos)

Dreamtime (Tempo do Sonho): O universo não começou com um ato criativo pontual, mas com o surgimento dos Ancestrais Totêmicos. Esses seres emergiram da terra e do céu, cantaram as coisas à existência e esculpiram montanhas, rios e desertos com seus corpos.

Cada tribo tem seus próprios Ancestrais — serpentes, cangurus, águias — e suas “linhas de canto” (songlines), que são trilhas espirituais pelas quais o mundo foi criado e ainda é mantido.

O tempo é circular: tudo o que existe já existia no Tempo do Sonho e continua sendo recriado por meio dos rituais.

6.4.5.2 – Polinésia (Havaí, Nova Zelândia, Taiti, Samoa, Tonga, Ilhas Cook)

Havaí: O mundo foi criado pela união de Papahānaumoku (a Mãe Terra) e Wākea (o Pai Céu). Suas crianças são as ilhas, os astros e os humanos. Os deuses moldam o mundo com palavras e genealogias.

Maori (Nova Zelândia): O universo nasceu do amor de Rangi (Céu) e Papa (Terra). Seus filhos, aprisionados entre eles, separam os pais e criam o espaço para o mundo. Cada aspecto natural é descendente de um deus.

Tonga/Samoa: Tangaloa, deus do céu, desce à terra com uma vara mágica e cria ilhas ao tocá-las com a ponta. Os humanos surgem do solo sagrado.

Taiti: O deus Ta’aroa saiu de um ovo cósmico e criou o mundo com suas conchas. Ele formou os céus em camadas e preencheu-os com estrelas.

6.4.5.3 – Melanésia (Papua Nova Guiné, Ilhas Salomão, Vanuatu, Fiji)

  • Papua Nova Guiné (povo Abelam): O mundo foi tecido por uma aranha cósmica que espalhou fios entre os mundos. Onde o fio tocava a terra, nascia vida.
  • Vanuatu: O deus Qat criou o mundo com madeira mágica. Moldou os primeiros homens, mas seu irmão trickster os escondeu na escuridão. Qat então criou o sol.
  • Fiji: A terra emergiu do fundo do mar pelas mãos de um deus-pescador que jogava anzóis nas profundezas e trazia ilhas à tona.

6.4.5.4 – Micronésia (Palau, Kiribati, Ilhas Marshall, Guam, etc.)

  • Palau: Um espírito ancestral moldou o mundo soprando areia sobre uma tartaruga celestial. As ilhas são suas pegadas.
  • Kiribati: O céu e a terra eram irmãos. Separaram-se quando um espírito travesso subiu ao firmamento com uma vara de fogo.
  • Ilhas Marshall: A primeira mulher nasceu da espuma do mar. Ela moldou as ilhas com seu cabelo e criou os peixes com seus dedos.

6.4.5.5 – Ilha de Páscoa (Rapa Nui)

  • Hotu Matu’a, o ancestral divino, navegou do mundo espiritual e trouxe o ovo da criação. Com sua chegada, as ilhas emergem do oceano.
  • Os moais (estátuas) representam os ancestrais divinizados, cuja força (mana) sustenta a fertilidade da terra e o equilíbrio do mundo.

6.4.6 – Cosmogonias do Ártico e Subártico

Para os povos do Ártico e Subártico, como os Inuítes, Yupik, Sámi, Chukchi, Nenets e tantos outros, a cosmogonia é inseparável da relação entre o humano e o animal, entre o visível e o invisível, entre o corpo e o sopro.

O mundo, nesses mitos, é com frequência trazido à existência não por uma divindade onipotente, mas por seres intermediários — como animais que criam, salvam ou transformam — ou por eventos cósmicos misteriosos, como o som de uma aurora ou o mergulho em um mar primordial. O tempo, muitas vezes, é um ciclo de esquecimento e renovação.

6.4.6.1 – Povos Inuit e Yupik (Groenlândia, Canadá, Alasca, Sibéria)

  • Inuítes (Groenlândia/Canadá): O mundo surgiu do gesto de Sedna, uma mulher que foi traída pelo pai e afundou no mar. Seus dedos, ao serem cortados, transformaram-se em focas, morsas e baleias. Sedna tornou-se a deusa do oceano, regulando a caça e a vida marinha.
  • Yupik (Alasca/Sibéria): O mundo foi escuro até que um corvo cósmico roubou a luz escondida. Ele moldou os homens do gelo e soprou sobre eles o calor da consciência.
  • Inupiat (Alasca): Um urso primordial mergulhou no nada e, ao emergir, trouxe nas patas os elementos da criação — gelo, fogo, céu e vento.

6.4.6.2 – Povos Chukchi, Even, Yukaghir, Nganasan (Sibéria Oriental)

  • Chukchi: O universo estava coberto por gelo eterno até que uma baleia gigante bateu a cauda e abriu fendas que formaram mares e continentes.
  • Even (Sibéria): Um corvo separou o céu da terra com seu bico. Antes, tudo era colado como uma pele dobrada.
  • Yukaghir: O céu era sólido até ser perfurado por uma flecha mágica. A luz entrou pelo buraco e revelou o tempo.
  • Nganasan: O universo é feito de camadas. O xamã viaja por elas montado no tambor sagrado, passando por portas guardadas por ursos e renas celestes.

6.4.6.3 – Povos Nenets e Samoyedos (Rússia Ártica)

  • Nenets: Uma rena branca caminhava sobre o oceano congelado. Suas pegadas tornaram-se rios, e seus olhos viraram luas.
  • Enets: A criação foi costurada com fios de vento por uma mulher-deusa. Onde ela cantava, surgiam estrelas e pensamentos.
  • Selkup: O mundo nasceu de um tambor que vibrava sozinho no meio do gelo. Cada batida fazia nascer uma palavra, um animal ou um espírito.

6.4.6.4 – Povo Sámi (Lapônia – Noruega, Suécia, Finlândia, Rússia)

  • O mundo foi criado pelo tambor do noaidi (xamã). Suas batidas despertaram os elementos: o fogo, o gelo, o vento e o tempo.
  • A árvore do mundo (mirki) conecta os planos: a raiz no submundo, o tronco no presente, os galhos no céu.
  • As constelações são renas correndo sobre o firmamento, e os sonhos humanos são considerados caminhos de retorno ao tempo da criação.

7 – Antártida: Cosmogonia do Silêncio Branco

Na vastidão da Terra, há um continente onde o mito se cala.

A Antártida não fala com palavras. Não entoa cantos ancestrais, nem guarda ossos de deuses, nem estende raízes de linhagem humana. Ela não moldou homens do barro, nem viu o céu se abrir em trovões de criação. Não há nela serpentes cósmicas, pássaros solares, nem gigantes sacrificados. A Antártida não tem voz — e, ainda assim, diz tudo.

Ela é o espaço anterior ao mito, o útero de silêncio onde o tempo dorme. Antes que o homem sonhasse deuses, a Antártida sonhava o gelo.

Neste extremo branco da existência, a criação não se deu por ação, mas por não-ação. A Antártida não criou o mundo: ela guardou o intervalo entre os mundos. É o hiato cósmico entre o fim e o recomeço. A ausência que antecede a forma. O ventre gelado onde os deuses hesitaram.

Se a África deu à luz a humanidade, e a Ásia moldou as escolas do espírito, a Antártida permaneceu intocada — como se soubesse que o mistério não precisa ser explicado.

Talvez, para alguns, ela seja o último reduto do não-dizer, do não-criar, do ser sem nome. Um continente em estado meditativo, onde o gelo não é ausência, mas memória mineral do tempo profundo.

Para outros, pode ser o eco da primeira vibração que não precisou de forma — o lugar onde o verbo ainda não se fez carne, mas paira suspenso, como neve eterna.

A Antártida é a cosmogonia do branco absoluto — onde não há mitos porque tudo já está dito em silêncio.

Ela nos convida à reverência, ao desapego das certezas, à escuta daquilo que não foi revelado.

Porque nem toda criação precisa começar com um grito. Algumas começam com um suspiro que nunca cessa.

8 – Conclusão Geral – A Unidade por Trás da Diversidade

Ao percorrermos as cosmogonias distintas — oriundas de povos, tradições, religiões e filosofias dos cinco continentes — somos conduzidos não apenas ao início simbólico do mundo, mas ao reencontro com aquilo que pulsa como essência em todas as narrativas: o desejo humano de compreender o mistério da existência.

Cada mito, cada poema, cada canto e cada doutrina nos revela fragmentos de uma mesma busca: quem somos, de onde viemos, e para onde vamos. As respostas variam em forma, linguagem e imaginação — mas no centro de todas elas há um eixo comum: a percepção de que a vida é sagrada, de que a criação é um ato contínuo, e de que o ser humano é parte de um todo maior, invisível, eterno.

Na cosmogonia cristã, o mundo nasce da palavra de Deus. Na ciência moderna, tudo emerge de uma singularidade energética. Para os hindus, o cosmos é uma dança. Para os aborígenes, é o sonho. Para os xamãs amazônicos, é o sopro das folhas e das serpentes. Para os inuítes, é o grito de um animal sagrado. Para os gregos, é o caos que se organiza. Para os africanos, é o tambor que ecoa o invisível.

Tudo isso nos conduz à mesma constatação: embora múltiplos em linguagem, somos uno em essência.

A criação não está apenas no passado mítico — ela se atualiza sempre que alguém narra, canta, medita ou contempla. Ela se renova nos ritos, nos ciclos da natureza, nas palavras transmitidas, no nascimento de uma criança, na escuta silenciosa do que é maior que nós.

Ao reunir essas 500 cosmogonias, não apenas resgatamos o patrimônio simbólico da humanidade. Damos um passo ético e ontológico rumo à reconexão com a totalidade. Compreendemos que, embora sejamos diferentes em nossos mitos, somos iguais na sede de sentido. E que não há criação sem escuta, sem reverência e sem humildade diante do mistério.

O mundo pode ter começado com um verbo, com um sopro, com um tambor ou com o silêncio do gelo.

Mas ele continua — em nós.

9 – Epílogo – A Morte como Retorno ao Princípio

Se é certo que tudo o que existe — o visível e o invisível, o denso e o sutil, o tempo, o espaço e a própria consciência — provém de um mesmo ponto de origem, então a morte não pode ser concebida como fim, mas como retorno. Não um retorno nostálgico, nem uma dissolução trágica, mas uma reintegração serena ao fundamento original de onde tudo emanou.

Assim como as estrelas exalam seus elementos no último suspiro para gerar novas formas de vida, o ser que morre se entrega novamente à origem — quer sob a forma de partículas físicas que voltam ao ciclo da matéria, quer sob a forma de uma centelha consciente que, talvez, retorne ao seio da Consciência Cósmica.

A ciência já reconhece que nada se perde, tudo se transforma. O corpo que retorna à terra fertiliza a vida, os átomos que antes formavam o coração de um ser humano podem, um dia, compor as células de uma árvore ou de um novo ser. A energia liberada se dispersa pelo cosmos, sem jamais deixar de existir.

Mas é a filosofia, aliada à espiritualidade, que ousa perguntar:
E o que ocorre com o “eu” que habitava esse corpo?

Platão nos fala de uma alma que retorna ao mundo das ideias. Plotino, de uma consciência que, ao depurar-se da matéria, reencontra sua origem no Uno. O budismo indica o caminho da dissolução do eu como libertação. A física de David Bohm nos sugere que a consciência pode ser uma manifestação de algo mais profundo — um campo implicado, eterno, invisível, do qual emergimos e para o qual poderíamos retornar.

Nesta perspectiva, a morte não é um colapso — é uma transição. É o fim de uma forma e o começo de um fluxo. É o silêncio que precede o novo som. É o mar que recebe de volta a gota, que nunca deixou de ser água.

Assim, se tudo vem de um mesmo ponto de energia primordial, e tudo retorna a ele, podemos afirmar, com serenidade:

Nada termina — tudo se reintegra.
Nada morre — tudo se transforma.
Nada se perde — tudo volta para casa.

A existência não começa nem termina — ela simplesmente É. Tudo o que vive, morre. Mas tudo o que morre, retorna. A vida é um ciclo eterno de transformação, expressão e reintegração. A energia primordial — o pai de todos os elementos — é o princípio imutável por trás da dança das formas. E nesse eterno retorno, somos viajantes que nunca deixam de ser parte do todo.

Referências

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Cristiano Medina da Rocha é advogado Criminalista, Especialista em Direito Constitucional com ênfase em Penal, mestre em Direito Processual Penal pela PUC/SP, Professor de Processo Penal e Constitucional na FIG-Unimesp. Conselheiro da OAB/SP – (19-21)

Insta: @crismedinarocha

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