Nos restaurantes, a trilha sonora entra de vez nos cardápios

Do lado de fora, no coração do Itaim Bibi, buzinas tocam em desarmonia descompassada. No entanto, assim que você entra pela porta do Banzeiro, restaurante de comida amazônica do chef Felipe Schaedler, é imediatamente transportado da cidade da garoa. Não apenas pelo cheiro de peixe assando ou pelo visual marcante, mas também pelo som que ecoa ali. Nos alto-falantes espalhados pelo restaurante, música amazonense e regional leva você para outro lugar. As buzinas ficam do lado de fora, junto com toda a agitação de São Paulo.

“Comida boa existe em muitos lugares. Mas o que faz uma experiência ser inesquecível, muitas vezes, são os detalhes, inclusive os que a gente nem percebe racionalmente”, diz o chef ao Paladar. “A música no Banzeiro cumpre esse papel. Ela dá o tom, transmite leveza, energia, personalidade. Não vejo o Banzeiro sem música. Ela faz parte da nossa história, da nossa essência, e ajuda a contar quem somos sem precisar dizer uma palavra.”

A experiência no Banzeiro ilustra perfeitamente o que chefs e especialistas têm descoberto: a música não é apenas um detalhe decorativo em um restaurante. Ela é, cada vez mais, um ingrediente essencial da receita que transforma uma refeição numa experiência inesquecível. E, assim como temperos na cozinha, a trilha precisa ser dosada com precisão, escolhida com cuidado e pensada estrategicamente para ser saborosa e completa.

O som que vende

“Vários estudos hoje em dia já comprovam que a música está entre a primeira ou segunda coisa mais importante na casa”, explica Zé Márcio Alemany, curador musical com mais de 20 anos de experiência e responsável pelas trilhas de diversos restaurantes pelo Brasil.

O impacto vai além da simples satisfação. A música influencia diretamente no consumo da casa. “É notório que quando você tem uma boa trilha, as pessoas consomem mais, ficam mais tempo e retornam procurando aquele clima novamente”, completa Alemany.

Na Bráz Elettrica, em Pinheiros, essa teoria vira prática. “A música tem esse poder de transformar a atmosfera”, diz Camila Prado, diretora de operações e experiência da marca. “Uma trilha mais animada traz energia, enquanto outra mais suave pode criar um ambiente acolhedor. No nosso caso, a música é indispensável, é um presente ao nosso cliente.”

A arte da curadoria

Criar uma playlist para restaurante não é simplesmente arrastar músicas favoritas para uma lista do Spotify sem pensar muito nisso. É um trabalho que exige conhecimento técnico, sensibilidade e uma compreensão profunda do conceito e clientes de cada estabelecimento.

No T.T. Burger, de Thomas Troisgros, a responsabilidade ficou nas mãos do sous-chef Rafael Cavalieri. Ele estabeleceu uma regra simples, mas eficaz: valorizar a música brasileira independentemente do estilo ou época.

“A ideia é fazer uma lista bem ‘aleatória’, mas que contempla todos os estilos e gostos. Você vai escutar um rock do Barão Vermelho, sair para um rap do BK e terminar o hambúrguer com MPB do Gilberto Gil”, explica Rafael.

Thomas gosta de personalizar cada uma de suas casas. “É importante ver o perfil do seu público e o estilo da casa para definir o que entra”, diz. “No Tijolada, que é um boteco, foco mais em música brasileira aleatória – tem Sidney Magal, É o Tchan! e Barão Vermelho. No Oseille, onde faço um Fun Dining, tem Pearl Jam, Pink Floyd, Madonna e Dr. Dre”, resume.

Música que conta histórias

Para alguns chefs, a trilha vai além do entretenimento e se torna uma ferramenta narrativa. Como o chef Felipe explica, a curadoria traz “a alma da Amazônia e do Norte do Brasil”.

No restaurante Origem, dos chefs Fabrício Lemos e Lisiane Arouca, a música dialoga diretamente com o menu “Nossas Heranças”, que apresenta receitas retratando a culinária baiana como herança de resistência.

A trilha inclui canções como Zumbi, de Jorge Ben Jor, Canto das Três Raças, na voz de Clara Nunes, e Tempo Rei, de Gilberto Gil.

“A trilha sonora faz parte de toda a experiência no restaurante, impossível conceber sem”, diz Lemos, sobre como nasce a música que sai do alto-falante. “É tudo sensorial – olfato, paladar, visão, audição. E ainda tem a narrativa, a história que estamos contando ali.”

Nos restaurantes do chef Kaywa Hilton – Boia, em Salvador, e Maré, na Praia do Forte -, a escolha musical acompanha não apenas o conceito da casa, mas também o humor do dia.

A hostess Maria Eduarda Hupsel, ou apenas Duda, explica que a seleção considera diversos fatores. “Estilo dos clientes presentes, previsão do tempo, turno”, contextualiza ao Paladar. “Em um dia de chuva, preferimos músicas mais tranquilas. Às sextas à noite, um som animado. Aos almoços de domingos, a influência do samba se faz mais presente.”

No Benjamin Osteria Moderna, em Porto Alegre, os irmãos Zaffari estruturaram as playlists por turnos com a ajuda do profissional Bernardo Liz. “Pela manhã, durante o café, optamos por músicas mais suaves. No almoço, o ambiente ganha um pouco mais de energia. No happy hour e jantar, aumentamos o volume e escolhemos faixas mais vibrantes”, contam.

Os desafios da harmonia perfeita

Criar uma trilha que funcione por horas a fio sem cansar ou incomodar é um dos maiores desafios para chefs, funcionários e, claro, curadores. “Eu trabalho com trilhas de 400, 500 músicas. São muitas horas e tenho que errar o mínimo possível”, explica Alemany. “Não pode ter erro. Não dá para ter um solo de trompete muito alto que derrube a música”.

Rafael Cavalieri, do T.T. Burger, enfrenta o dilema de equilibrar gosto pessoal com o que o público quer ouvir. “Se fosse montar uma playlist só minha, teria 90% de rock dos anos 80 e 90”, brinca. “Por isso, ao montar a playlist, é preciso ouvir novidades, incluir pop, rap, trap, indie, black, MPB… E ter uma playlist bem longa para que os funcionários não enjoem.”

O cuidado se estende aos detalhes técnicos. A Bráz Elettrica investiu em caixas artesanais feitas sob medida pelo Studio Cube, enquanto o Benjamin dedicou atenção especial à acústica do espaço, com isolamento em paredes, além de carpete para absorção sonora.

A receita do ambiente perfeito

Com tantos estilos de playlists e com as mais variadas formas de montar a trilha sonora de um restaurante, será que tem um “jeito certo” de fazer isso? Será que existe uma fórmula mágica, regras de ouro?

“A música tem que permear o ambiente, mas não pode ficar em evidência o tempo todo”, resume Alemany. “Ela precisa permitir que as pessoas conversem, não atrapalhar o fluxo da conversa, mas influenciar positivamente no consumo”.

O curador explica que a música certa faz as pessoas ficarem mais tempo à mesa, consumirem mais e, principalmente, voltarem. “Aquilo fica na mente e ela retorna procurando aquele clima novamente”, diz o especialista em trilhas sonoras.

Para Thomas Troisgros, ver o resultado na prática é gratificante. “É legal demais ver como a galera come e acaba cantando junto e até dançando na cadeira”, diz.

A conclusão é unânime entre chefs e especialistas: em tempos de experiências gastronômicas cada vez mais elaboradas, a música deixou de ser apenas trilha sonora para se tornar um dos ingredientes principais da receita. Afinal, como bem define Alemany, “a experiência fica em outro nível quando você tem a música pensada junto com a luz, o conforto, uma cadeira boa, a comida. Tudo abraçando isso é a experiência completa”.

E quando tudo funciona, o resultado é mágico: as buzinas da cidade ficam do lado de fora, e por algumas horas, você é transportado para onde a música (e a comida) quiser levar.

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