O avanço do crime organizado traz uma série de consequências danosas para moradores da Amazônia Legal, segundo a 4ª edição do Cartografias da Violência na Amazônia, estudo divulgado nesta quarta-feira, 19, em meio à Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP30), que ocorre em Belém.
A pesquisa aponta que a atuação de facções como o Comando Vermelho (CV) resultou em aumento do uso de óxi, droga considerada mais forte que o crack, e até no surgimento de “minicracolândias” em cidades da região da tríplice fronteira com Peru e Colômbia, como Tabatinga e Benjamin Constant, no Amazonas.
“Pelo menos na região do Alto Solimões, esse é um problema que tem afetado principalmente comunidades indígenas que estão em regiões periurbanas (entre a zona rural e ambientes urbanos)”, afirma ao Estadão David Marques, gerente de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
“O que chamou a atenção nesse caso foi isso também estar presente numa região fronteiriça e estar afetando mais diretamente comunidades indígenas, algo que não tinha sido documentado dessa forma até então. Havia muito mais relatos em relação ao uso abusivo de álcool, que também segue presente”, acrescenta.
O Cartografias da Violência na Amazônia, um dos estudos mais robustos sobre o avanço do crime organizado na região de floresta, é produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com entidades como os institutos Mãe Crioula e Clima e Sociedade.
O material apontou que 17 facções criminosas têm presença ativa na Amazônia Legal, incluindo três grupos estrangeiros. Elas estão em quase metade das 772 cidades da região. O foco principal é o tráfico internacional, mas a presença desses grupos também tem acarretado em consequências diretas à população.
Mais de um quarto das cidades da Amazônia Legal são dominadas pelo CV. A região é considerada estratégica pela possibilidade de importar rapidamente cargas de cocaína e skunk de países como Peru e Colômbia, além de permitir que as mesmas rotas sejam usadas para crimes ambientais.
“Embora também trabalhe o tráfico no atacado (tido como o principal foco de grupos como o CV), digamos, (as facções) também têm interesse grande em controlar e disponibilizar essa droga no varejo, no mercado local”, afirma Marques. O pesquisador afirma que as minicracolândias podem ser vistas como um problema diretamente associado à intensificação da presença de organizações criminosas que têm o narcotráfico como um de seus principais pilares econômicos – além do Comando Vermelho, também atua na região o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Conforme o Cartografias, as minicracolândias, descritas como problema recente da região, têm piorado a sensação de insegurança de moradores do Alto Solimões. “A cocaína é barata, mas eles acabam utilizando uma mais barata ainda, um refugo, um resto da preparação, que vira o óxi”, descreve uma autoridade de Benjamin Constant ouvida pelos pesquisadores.
Uso de óxi, mais forte que o crack, preocupa
O “óxi” (ou oxidado), subproduto da cocaína que combina substâncias químicas como cal, querosene, gasolina ou solventes em um produto de baixo custo, é apontado como o principal vetor da desestruturação familiar e da cooptação da juventude na região, segundo o estudo. “Famílias relatam perder o controle de seus filhos muito jovens sendo recrutados para o consumo e para a pequena criminalidade a ele associada”, diz o Cartografias.
Segundo a pesquisa, em entrevistas com autoridades policiais e municipais, a maior parte dos furtos e pequenos roubos nas cidades é atribuída a dependentes químicos que buscam sustentar o vício, “alimentando um ciclo de insegurança de baixa intensidade, mas de alta frequência, que gera medo e altera o modo de vida nas cidades”.
Nas comunidades indígenas do Alto Solimões, o microtráfico (ou tráfico de varejo) tem se consolidado como uma das principais formas de presença do crime organizado, ocupando a maior parte dos relatos e das demandas por segurança por parte dos indígenas. “O consumo abusivo de álcool e drogas é uma preocupação amplamente relatada, trazida por mães e lideranças ticuna, que observam a crescente intrusão desse tipo de comércio e produto nas aldeias, sobretudo nas maiores e com maior acessibilidade fluvial”, diz o estudo.
“Essas dinâmicas, embora não sejam inteiramente novas, se intensificaram a ponto de se tornarem a pauta mais urgente dessas comunidades, que têm se mobilizado em diversas direções para dar conta do problema”, acrescentam os pesquisadores.
O Cartografias aponta que, em uma das maiores aldeias indígenas da região de Tabatinga, uma das principais portas de entrada da droga na Amazônia, há relatos de práticas que se assemelham às observadas em centros urbanos: reuniões noturnas de adolescentes com música e venda e consumo de bebidas alcoólicas e drogas.
O acesso aos itens é proporcionado por pessoas de fora dessa comunidade, mas também pode ser facilitado por jovens ticuna cooptados pelo tráfico. Segundo o estudo, eles têm se envolvido cada vez mais cedo nessas dinâmicas: os relatos dão conta de uma faixa etária entre 12 e 16 anos.
O óxi não é uma droga exatamente nova: houve preocupação em relação ao uso da substância no começo dos anos 2010. A Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo publicou em 2011 um alerta em que afirmou que a droga teria um efeito ainda mais devastador à saúde do que o crack.
“O que se relatava naquele momento, aqui em São Paulo pelo menos, é que os traficantes conseguiam vender o óxi mais barato, como um atrativo, ou muitas vezes ofereciam o óxi para aqueles que já estavam sob o efeito do crack, conseguindo ter uma lucratividade maior, já que o óxi era vendido como crack”, afirma Marques.
Umariaçu e Belém do Solimões estão entre comunidades afetadas
Entre as regiões mais afetadas pelo surgimento de minicracolândias na Amazônia estão as comunidades de Umariaçu e Belém do Solimões, esta última uma das maiores do Brasil. “É uma surpresa que tenha chegado também num território como esse a formação de um problema já bem documentado em grandes centros urbanos”, diz Marques.
As minicracolândias são descritas no estudo como espaços de uso contínuo de drogas e que envolvem até mesmo mulheres com crianças pequenas. Entre as consequências diretas desse fenômeno, estão, por exemplo, casos de violência doméstica.
O estudo aponta que, em 2024, 586 mulheres foram assassinadas na Amazônia Legal, o equivalente a 4,1 vítimas para cada 100 mil mulheres. A taxa é 21,8% superior à média nacional. “Lideranças relatam que, antes da entrada do tráfico, não havia registros de agressões vinculadas ao uso de drogas ou álcool”, diz o Cartografias.
A pesquisa destaca que terras indígenas do Alto Solimões – são 41 no total – têm sido usadas como corredores logísticos do tráfico, áreas de armazenamento e pontos de circulação de drogas. Alerta ainda que tem crescido o aliciamento de jovens pelo comércio varejista, impulsionado por endividamento, ausência de oportunidades e erosão dos vínculos comunitários.
“Relatos de lideranças descrevem ameaças de morte, retaliações e invasões silenciosas, somadas ao uso intensivo de álcool e drogas, que alteram profundamente as dinâmicas comunitárias e agravam a violência intrafamiliar”, diz o estudo.


