Líbano aceita proposta dos EUA para desarmamento do Hezbollah; grupo xiita rejeita ideia

Os Estados Unidos apresentaram ao Líbano uma proposta para desarmar o Hezbollah até o final do ano, de acordo com uma cópia da agenda do gabinete libanês analisada pela agência Reuters. O plano também inclui o fim das operações militares de Israel no país e a retirada de suas tropas de cinco posições no sul do Líbano.

A proposta, apresentada pelo enviado dos EUA para a região, Tom Barrack, estabelece os passos mais detalhados até agora para desarmar o Hezbollah, milícia xiita apoiado pelo Irã. A facção rejeitou crescentes pedidos para abandonar a luta armada desde a guerra com Israel no ano passado.

Segundo o ministro da Informação libanês, Paul Morcos, Beirute concorda com os objetivos e com a retirada de tropas israelenses, mas não discutiu detalhes de implementação. O Departamento de Estado americano não respondeu a perguntas da Reuters. Ministros do governo de Beirute não puderam ser contatados.

Os representantes do Hezbollah se retiraram da reunião do gabinete desta quinta em protesto contra as discussões da proposta. A organização xiita é apoiada pelo Irã e uma das forças militares não-estatais mais poderosas do planeta. O grupo afirma que tratará a proposta “como se ela não existisse”, abrindo caminho para uma perigosa crise.

Israel lançou golpes significativos ao Hezbollah em uma ofensiva no ano passado, o clímax de um conflito que começou em outubro de 2023, depois que a facção libanesa abriu fogo contra posições israelenses na fronteira ao declarar apoio ao Hamas no início da guerra em Gaza. Esses golpes incluíram a morte do então líder do grupo, Hassan Nasrallah.

A proposta dos EUA visa “estender e estabilizar” um acordo de cessar-fogo entre Líbano e Israel negociado em novembro. “A urgência desta proposta é sublinhada pelo número crescente de reclamações sobre violações israelenses do atual cessar-fogo, incluindo ataques aéreos e operações transfronteiriças que arriscam desencadear um colapso do frágil status quo.”

A fase 1 da proposta exige que o governo de Beirute emita um decreto dentro de 15 dias comprometendo-se com o desarmamento completo do Hezbollah até 31 de dezembro de 2025. Nesta fase, Israel também cessaria operações militares terrestres, aéreas e marítimas.

A fase 2 exige que o Líbano comece a implementar o plano de desarmamento dentro de 60 dias, com o governo aprovando “um plano detalhado de implantação [do exército libanês] para apoiar o plano de colocar todas as armas sob a autoridade do Estado”. Este plano especificará alvos para serem desarmados. Durante a fase 2, Israel começaria a se retirar das posições que mantém no sul do Líbano, e prisioneiros libaneses detidos por Tel Aviv seriam libertados em coordenação com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

Já na fase 3, dentro de 90 dias, Israel se retirará dos dois últimos pontos que mantém. Há garantias de financiamento para iniciar a remoção de escombros no Líbano e a reabilitação da infraestrutura em preparação para reconstrução.

Na fase 4, dentro de 120 dias, as armas pesadas restantes do Hezbollah devem ser desmanteladas, incluindo mísseis e drones. Nesta última fase, EUA, Arábia Saudita, França, Qatar e outros países organizarão uma conferência para apoiar a economia libanesa e a reconstrução do país e para “implementar a visão do presidente Trump para o retorno do Líbano como um país próspero e viável”.

Resistência do Hezbollah

Mas o plano, cuja aprovação pelo gabinete foi celebrada pelo embaixador americano no Líbano, Tom Barrack, tem um grande adversário: o Hezbollah.

Na véspera da aprovação, o grupo afirmou em comunicado que o plano havia sido “ditado” pelos EUA, que o governo do premiê Nawaf Salam estava cometendo “um grande pecado ao retirar do Líbano as armas para resistir a Israel”, e que trataria a proposta “como se ela não existisse”. Nesta quinta-feira, os ministros do Hezbollah e do Movimento Amal, também xiita, participaram da discussão sobre o projeto, “mas se retiraram antes da votação”, segundo Paul Morcos.

Por vezes chamado de “Estado dentro de um Estado”, e principal força política do Líbano nas últimas décadas, o Hezbollah sofreu perdas consideráveis durante a ofensiva israelense do ano passado, a começar por seu longevo líder, Hassan Nasrallah, morto em um bombardeio. Boa parte de seu arsenal, composto por dezenas de milhares de mísseis e foguetes, foi obliterado, e milhares de combatentes morreram. A queda do regime de Bashar al-Assad na Síria, em dezembro do ano passado, eliminou um aliado e uma importante rota de abastecimento, especialmente militar, com o Irã.

Mesmo com o Hezbollah enfraquecido, o governo adotava um tom cauteloso, evitando um confronto político com o grupo e com parte da população xiita do Líbano. A nova posição ameaça colocar em risco o equilíbrio moldado após o fim da guerra civil no Líbano, encerrada em 1990. A guerra civil libanesa eclodiu em 1975 em meio a conflitos étnico-religiosos que ocorriam desde que a região estava sob controle do Império Otomano (séculos XIV-XX). O conflito envolveu cristãos do Partido Falangista, muçulmanos e judeus israelenses.

Historicamente, o presidente do país é sempre cristão, o premiê é muçulmano sunita e o líder do Parlamento é xiita. As tensões sociais decorrentes desse arranjo levaram a um acirramento de disputas e a formação de milícias, que levaram à eclosão da guerra civil. A situação piorou com o envolvimento da Síria, que ocupou o leste do Líbano em 1976, e de Israel, que tomou o sul em 1978. Já em 1982 Israel cercou a capital, Beirute, levando o conflito a um de seus momentos mais dramáticos. O Hezbollah surgiu nesse contexto, com financiamento do Irã e se apresentando como uma força de resistência contra a ocupação israelense.

“O Hezbollah ainda é forte no estado por causa do monopólio [que tem] sobre a representação xiita, bem como pela nomeação de figuras-chave”, afirmou à rede al-Jazeera o deputado Mark Daou, do partido Taqaddum.

Mas na terça feira, após uma reunião de Gabinete, o premiê libanês, Nawaf Salam, reafirmou o “dever do Estado de monopolizar a posse de armas”, e o presidente Michel Aoun determinou que o Exército crie um plano para que todos armamentos pesados estejam, até o fim do ano, sob controle das Forças Armadas. Para analistas, o anúncio é resultado da pressão americana por resultados imediatos – vide o plano aprovado nesta quinta-feira -, que não leva em consideração questões políticas locais.

“Este processo é muito perigoso do jeito que está se desenrolando. Na verdade, ele consolidará e empurrará setores potencialmente ainda mais amplos da parcela xiita da sociedade libanesa para o lado do Amal e do Hezbollah, em vez de para a consolidação nacional”, disse ao jornal britânico The Guardian Joseph Daher, autor de “Hezbollah: a Economia Política do Partido de Deus”.

Em declarações transmitidas pela TV do Hezbollah na terça-feira, o líder do grupo, Naim Qassem, reafirmou que não pretende entregar suas armas. “A Resistência (termo usado para se referir ao grupo) está bem, forte e pronta para lutar pela soberania e independência do Líbano. O Hezbollah fez grandes sacrifícios para defender o Líbano contra a agressão israelense”, disse ele. (Com agências internacionais).

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