Durante décadas, a Justiça se desenhou em um cenário onde apenas dois personagens brilhavam sob os holofotes: o Estado, sempre na acusação, e o réu, o acusado. Nesse palco, a vítima era, no máximo, um figurante, alguém que entrava e saía da cena rapidamente, deixando apenas rastros sutis de sua passagem. Mas, desde meados do século XX, essa dinâmica começou a se transformar, como se a Justiça finalmente percebesse a presença de um personagem até então quase invisível.
Tudo começou com a Vitimologia, ciência surgida das reflexões de Benjamin Mendelsohn e Hans Von Henting. Foi um sopro de ar fresco, uma verdadeira mudança de roteiro. Esses pesquisadores perceberam que a vítima não era apenas uma testemunha silenciosa, mas alguém cuja vida havia sido alterada profundamente pelo crime. E assim, a Justiça começou lentamente a olhar com mais atenção e cuidado para aquele que, até então, estava à margem.
Historicamente, a Justiça já viveu tempos sombrios, como na Idade Média, quando as investigações eram implacáveis e cruéis. Depois, veio o Iluminismo, que trouxe consigo direitos fundamentais, protegendo sobretudo o acusado contra excessos do Estado. Mas nessa luta entre Estado e réu, onde estavam as vítimas? Quase sempre em segundo plano, esperando em silêncio por alguma forma de reconhecimento ou reparação.A teoria do bem jurídico exemplifica bem essa ausência histórica. Para essa teoria, o crime viola valores da sociedade, como a vida em abstrato, e não especificamente a dor real de uma pessoa. No caso de homicídio, por exemplo, protege-se a vida enquanto valor coletivo, deixando quase invisível a tragédia individual da vítima e sua família.
Foi com o movimento vitimológico que a figura da vítima ganhou corpo e voz própria. A Justiça passou a reconhecer que, por trás dos processos e papéis, há histórias pessoais marcadas por sofrimento real. Esse movimento deu à vítima o direito de participar ativamente dos processos criminais, exigindo proteção física e emocional, e garantindo medidas que buscam minimizar os danos sofridos.
Hoje, é comum ver vítimas assumindo papel ativo em julgamentos, como assistentes de acusação, colaborando com provas e participando diretamente da busca por justiça. Foram criados mecanismos específicos, como depoimentos protegidos e salas especiais para minimizar impactos psicológicos, especialmente em casos delicados envolvendo crianças ou violência doméstica.
Além disso, avanços importantes surgiram em relação à reparação de danos. O sistema jurídico passou a prever indenizações específicas, permitindo que as vítimas sejam ressarcidas financeiramente pelos prejuízos materiais e morais sofridos. Isso trouxe para o processo penal uma dimensão de justiça mais concreta e pessoal, distanciando-se da visão abstrata que prevaleceu por tanto tempo.
A justiça restaurativa também ganhou espaço nesse novo contexto. Ao invés de focar exclusivamente na punição do acusado, essa abordagem busca a reconciliação entre vítima, agressor e comunidade, criando condições para que todos possam superar as consequências do crime de forma mais humana e empática. A vítima, nesse cenário, tem seu sofrimento reconhecido não apenas em termos legais, mas em uma perspectiva verdadeiramente social e emocional.
Essa mudança de paradigma enfrenta, é verdade, desafios constantes. A sociedade ainda precisa avançar em mecanismos de apoio psicossocial e jurídico efetivos, assegurando que vítimas vulneráveis, especialmente aquelas em situações extremas, tenham acesso amplo e irrestrito aos seus direitos. Apesar disso, o progresso alcançado nas últimas décadas é inegável.
Tal transformação é crucial para uma visão equilibrada da justiça, na qual nenhum personagem é esquecido ou tratado como mero coadjuvante. A vítima, antes quase invisível, agora tem a chance de assumir um protagonismo real, capaz de influenciar profundamente as decisões judiciais e, consequentemente, contribuir para uma sociedade mais justa e solidária.
Portanto, é necessário que o debate sobre o papel das vítimas permaneça vivo e presente, estimulando reflexões constantes sobre como aprimorar continuamente nosso sistema de justiça. Afinal, um sistema jurídico justo é aquele que reconhece, acolhe e repara integralmente os danos sofridos por quem, muitas vezes, é a parte mais fragilizada pelo crime. A vítima, enfim, merece ocupar um lugar central no palco da Justiça.