DECISÃO DA JUSTIÇA DESCLASSIFICA ACUSAÇÃO CONTRA MOTORISTA EM GUARULHOS E CHAMA ATENÇÃO PARA RISCOS DE JULGAMENTOS MIDIÁTICOS

Motorista acusado de matar pedestre em Guarulhos não responderá por homicídio doloso

Na madrugada de 11 de abril de 2025, por volta das 2h, um atropelamento fatal ocorreu na Avenida Tiradentes, região central de Guarulhos. O motorista Erik Rodrigo Batista, 38 anos, conhecido como Gaza, conduzia um Audi Q3 quando perdeu o controle da direção, invadiu a calçada e atropelou Cristiano Almeida da Cruz, que caminhava pelo local. A vítima não resistiu aos ferimentos e faleceu ainda no local, tendo o condutor sido preso em flagrante por policiais militares.

De acordo com a denúncia apresentada pelo Ministério Público, Gaza foi acusado de homicídio qualificado com dolo eventual – quando se assume o risco de matar – e de embriaguez ao volante (artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro). A investigação apontou que ele teria ingerido grande quantidade de álcool antes de dirigir; testemunhas relataram que o Audi transitava em alta velocidade momentos antes do choque. No momento da abordagem os policiais, alegaram que Erik Batista apresentava aparentes sinais de embriaguez, como fala pastosa, andar cambaleante, odor etílico e vestígios de vômito em suas roupas e no veículo. Na versão dos policiais, ele teria se recusado a realizar o teste do bafômetro no local e não foi submetido a exame de sangue ou clínico para aferir a dosagem alcoólica.

Decisão judicial favorável ao réu

Em decisão proferida no último dia 17 de dezembro, o juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo, da Vara do Júri de Guarulhos, reavaliou a classificação jurídica do caso e tomou uma decisão favorável ao acusado. O magistrado desclassificou a imputação de homicídio qualificado (doloso) para homicídio culposo na direção de veículo automotor, entendendo que não se trataria de um crime doloso contra a vida. Na prática, isso significa que Erik Batista não irá a júri popular por homicídio doloso. Ele passará a responder por homicídio culposo de trânsito, infração que, tem pena significativamente mais branda do que a de um homicídio doloso qualificado.

Ao fundamentar a decisão, o juiz ressaltou que a conduta imprudente no trânsito, por si só, não basta para caracterizar dolo eventual. Mesmo considerando que o réu violou normas ao dirigir sob efeito de álcool, não há evidências de que ele tenha assumido conscientemente o risco de matar. Conforme escreveu o magistrado, “não foram amealhados nos autos elementos indicativos de que o réu quis ou assumiu, conscientemente, o risco de matar a vítima, porquanto inexistem outras circunstâncias concretas aliadas à embriaguez que possam apontar a indiferença própria do dolo eventual”. Em outras palavras, dirigir embriagado – embora seja grave e ilegal – não implica automaticamente aceitar ou desejar o resultado morte. Para haver dolo eventual, seria necessário que o motorista tivesse demonstrado clara indiferença pela vida alheia ou intenção latente de causar dano fatal, o que na visão do juiz não ficou comprovado neste caso.

Diante dessa análise, o juiz concluiu pela readequação da acusação. “Desclassifico a imputação feita na denúncia contra o réu […] para o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor sob a influência de álcool, portanto não doloso contra a vida”, decidiu Rodrigo Tellini. Com a alteração, o processo será remetido à vara criminal comum para prosseguimento, uma vez que deixa de ser competência do Tribunal do Júri (restrito a crimes dolosos contra a vida). O réu permanece em liberdade provisória enquanto responde ao processo – ele havia obtido esse direito meses antes – e continuará sujeito às medidas cautelares impostas, como suspensão da habilitação para dirigir, comparecimento periódico em juízo e proibição de frequentar bares e casas noturnas.

Defesa contesta e pretende recorrer

Apesar do alívio trazido pela desclassificação do crime para a esfera culposa, a defesa de Erik Batista adiantou que irá recorrer da decisão, buscando livrá-lo de qualquer responsabilização criminal pelo ocorrido. Os advogados argumentam que nem mesmo o homicídio culposo ficou caracterizado, sustentando que o atropelamento resultou de uma fatalidade causada por um mal súbito do motorista, e não por imprudência ou negligência dele.

Segundo a defesa, vários fatores indicam que Gaza não deveria ser responsabilizado pelo óbito. Entre os principais pontos apresentados pelos advogados estão:

  • Mal-estar repentino: momentos antes da colisão, o acusado teria passado mal e vomitado, o que o fez perder o controle do veículo de forma involuntária. Esse quadro de mal súbito – corroborado pelos vestígios de vômito encontrados no carro após o acidente – indicaria que a tragédia ocorreu sem que ele pudesse evitar, tratando-se de um infortúnio e não de uma conduta culposa deliberada.
  • Falta de prova da embriaguez: a defesa destaca que não há comprovação técnica de alcoolemia no processo. Batista não foi submetido a teste do bafômetro, exame de sangue ou avaliação médica oficial na ocasião, de modo que não existe laudo pericial confirmando que ele dirigia sob influência de álcool. Os advogados afirmam que, sem exame clínico, toxicológico ou etílico, não se pode ter certeza da suposta embriaguez ao volante.
  • Questionamento da abordagem policial: os advogados contestam a forma como as provas foram obtidas pelos policiais militares. Eles alegam que Batista não foi informado de seu direito constitucional de permanecer em silêncio no momento da detenção. No processo, a defesa chegou a classificar a filmagem da câmera corporal da PM como um “verdadeiro interrogatório informal conduzido por policial militar, seguido de suposta confissão, para somente ao final ser proferido o chamado Aviso de Miranda” – referência à advertência sobre o direito de não se autoincriminar. Essa suposta irregularidade, segundo a defesa, torna questionável a legitimidade do vídeo usado como prova, pois a confissão do suspeito teria sido colhida sem as garantias legais desde o início da abordagem. Os advogados também acusam as autoridades de apresentarem apenas os trechos “convenientes” da gravação, possivelmente omitindo partes que poderiam favorecer o réu em seu contexto.

Ao enfatizar esses pontos, a defesa de Erik Batista busca reforçar a tese de que o episódio foi uma infeliz casualidade, agravada por fatores alheios à vontade do motorista. Os advogados afirmam que irão recorrer da decisão para tentar a absolvição total do réu, defendendo que não houve crime, mas sim um acidente inevitável nas circunstâncias narradas.

O réu foi defendido na ação pelos advogados Eduardo Ferrari, Cristiano Medina da Rocha, Rodrigo Cunha e Leonardo Camargo, que seguem atuando no caso.

A decisão é um lembrete de algo básico — e frequentemente esquecido quando o assunto vira manchete: no Estado de Direito, ninguém deve ser “condenado” por clamor público. A Constituição garante a presunção de inocência, e o processo penal existe justamente para separar fatos provados de versões apressadas.

“Nada de concreto” para sustentar o dolo: o que pesou na decisão

Ao examinar as provas produzidas, o magistrado apontou a ausência de elementos objetivos que permitissem concluir, pela existência de condutas típicas de assunção consciente do risco. Em trecho que contrasta com leituras simplificadoras (e muitas vezes infladas fora dos autos), o juiz registra que “não havendo nos autos nada de concreto quanto às circunstâncias que precederam o acidente, tal como a realização de manobras arriscadas”.

Também destacou limites técnicos sobre inferências apressadas: “velocidade excessiva do veículo automotor na via não pode ser reconhecida”, apontando que a conclusão técnica apresentada pela defesa situaria a dinâmica em patamar compatível com velocidade moderada para a via.

A defesa também apresentou elementos técnicos para discutir a dinâmica do evento, insistindo que o caso deve ser analisado com método, e não por rótulos. Essa linha é especialmente relevante em situações de forte repercussão, quando o debate público tende a trocar prova por indignação.

Quando a notícia vira sentença

Casos com grande comoção merecem cobertura jornalística responsável — mas não comportam linchamento moral. “Julgamentos midiáticos” costumam produzir dois danos simultâneos: de um lado, pressionam por respostas imediatas; de outro, desumanizam pessoas que ainda serão avaliadas sob contraditório, perícias, depoimentos e decisões fundamentadas.

No próprio rito, o juiz lembra que há uma etapa em que se deve evitar “certezas” artificiais, porque a análise aprofundada cabe ao procedimento adequado e às instâncias competentes. Ele ressalta que, nessa fase, a apreciação se limita ao necessário e que é “interditada ao juiz togado a incursão aprofundada nas provas, sua valoração e a busca por um juízo de certeza”.

Presunção de inocência não é “favor”: é pilar civilizatório

A dignidade de qualquer acusado não depende de aprovação popular — depende de garantias. Presunção de inocência significa que a culpa precisa ser demonstrada no processo, e não presumida fora dele. A decisão judicial que reorienta o caso reforça esse compromisso: com o devido processo, com a análise técnica e com a recusa a condenações por manchete.

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/04/11/motorista-de-carro-de-luxo-e-preso-em-guarulhos-ao-atropelar-matar-pedestre-e-fugir-sem-prestar-assistencia.ghtml

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/05/07/justica-manda-soltar-motorista-de-carro-de-luxo-que-dirigia-bebado-e-atropelou-e-matou-um-pedestre-em-guarulhos-na-grande-sp.ghtml

https://sbtnews.sbt.com.br/noticia/policia/ex-suplente-de-vereador-e-influencer-atropela-e-mata-um-homem-em-guarulhos-apos-quase-beber-5-litros-de-cerveja

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Por Redação Folha de Guarulhos.

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