O maestro Edilson Ventureli cuidou de cada detalhe do Teatro Baccarelli, espaço que será inaugurado nesta terça-feira, 25, no Instituto Baccarelli, na região sul de São Paulo. Ele bronqueou quando percebeu que o rodapé do saguão não estava à altura do teatro. Também quis saber como os operários que trabalhavam na obra iriam remover uma mancha de solda no corrimão da escada que leva ao segundo piso.
“Eu sou chato”, brinca Ventureli, que ocupa o cargo de CEO do instituto fundado pelo maestro Silvio Baccarelli (1931-2019) em 1996 para criar oportunidades para jovens da comunidade de Heliópolis, na época atingida por um grande incêndio. “Não aceito mais ou menos. Colocamos a excelência em primeiro lugar em tudo o que fazemos no Baccarelli. Não vai ser no teatro que vou abrir mão disso”, completa.
É como em um concerto, questiona a reportagem do Estadão? “Sim, sou forjado para melhorar. Tenho que ficar à frente da orquestra, ouvindo 80 músicos tocando, escutar e perceber as oportunidades de melhoria. Cada dia queremos mais”, diz Ventureli.
O Teatro Baccarelli abre suas portas com o título de primeira sala de concerto dentro de uma favela no mundo – Heliópolis é a maior comunidade da cidade, com uma área de 1,2 milhão de metros quadrados, de acordo com dados da Prefeitura de São Paulo.
Com 1.300 metros quadrados de área construída, o teatro, que fica na Estrada das Lágrimas, ao lado do Instituto, tem 533 lugares e acústica projetada pela Acústica & Sônica, empresa também responsável pela Sala São Paulo e o Teatro Cultura Artística – os lambris em madeira instalados atrás do palco lembram em muito o Cultura Artística. Atrás deles, armários e cortinas para regular a pressão sonora dentro da sala, de acordo com a necessidade.
O espaço será a casa da Orquestra Sinfônica de Heliópolis, mas também de outras manifestações artísticas, como o rap e o funk – na semana de inauguração, uma apresentação vai reunir os cantores Péricles e Simoninha – veja a programação completa mais abaixo. Equipada com um fosso de orquestra, a sala poderá receber ainda espetáculos de dança, óperas e musicais. O objetivo é que o Teatro Baccarelli não tenha restrições artísticas ou técnicas.
“Acreditamos que, para quem tem menos, temos que oferecer mais. Por isso, sempre sonhamos com uma sala de concerto que tivesse o que há disponível de melhor no mundo. É uma sala pequena, mas equipada com o que há de melhor em técnica construtiva e de acústica”, diz o maestro.
O teatro chama atenção também por suas poltronas coloridas. São cinco diferentes: amarela, vermelha, verde, azul e branca. Não por acaso. Trata-se de uma homenagem a três ruas de Heliópolis que receberam essas cores em um projeto organizado pelo arquiteto Ruy Ohtake (1938-2021) em 2004. Com isso, a sala perde qualquer traço de sisudez – mas também não perde a imponência.
O Teatro Baccarelli custou cerca de R$ 48 milhões, com R$ 32 milhões provenientes da Lei Rouanet, R$ 8 milhões do Governo do Estado de São Paulo, R$ 4 milhões em equipamentos de áudio e vídeo da Pró-Vida e a diferença em doações de pessoas físicas e de outras empresas. O patrocínio master é do Itaú.
A obra, que transformou um barranco em teatro, durou um ano e meio e atendeu a um desejo existente há pelo menos 20 anos. Ventureli acredita que, para a comunidade de Heliópolis, o Teatro Baccarelli será motivo de “orgulho” e de “pertencimento”. Atualmente, o Instituo Baccarelli atende a cerca de 1.600 crianças e jovens em diferentes projetos, sempre com a música como protagonista.
O maestro conta um fato que ocorreu meses atrás, quando convidou um grupo de moradores da comunidade para fazer uma visita ao teatro, ainda em obras, sem as poltronas. “Um senhor começou a chorar muito quando entrou no teatro. Quando ele parou de chorar, me disse: ‘Desculpe maestro, mas faz 30 anos que ando pelo centro de São Paulo, passo na porta do Teatro Municipal, tenho vontade de entrar, mas nunca tive coragem. Agora, minha quebrada vai ter um teatro'”.
“O Municipal, o Masp, o MIS, são, sim, pertencentes a eles. Os moradores daqui têm dignidade e empoderamento para frequentar esses espaços”, diz Ventureli, que chama atenção para o fato de que o Teatro Baccarelli não será exclusivo dos grupos artísticos do Instituto, mas sim “um teatro para São Paulo, para o Brasil e para o mundo”, que colocará Heliópolis definitivamente na cena cultural.
“No início do Instituto, ouvimos, de forma pejorativa, que estávamos querendo transformar a música clássica em ‘coisa de favela1. Agora, a música clássica é coisa de favela, sim. Com o teatro, agora, queremos receber os organismo oficiais de arte e de cultura. Queremos as grandes orquestras, grandes corais, grandes balés, usando o Baccarelli”, afirma Ventureli.
Sentada na plateia do Teatro Baccarelli, assistindo ao ensaio final da apresentação de inauguração comandado pelo maestro Isaac Karabtchevsky, está Jéssica Albuquerque aprendeu a tocar teclado ainda na infância, na igreja na qual frequentava. Moradora de Heliópolis, ela entrou no Baccarelli, aos 16 anos, em 2007. “Descobri a música clássica, de concerto, que era algo que não era do meu convívio”, diz ela, que escolheu o contrabaixo como instrumento e passou pelas orquestra juvenil e pela Sinfônica de Heliópolis.
Atualmente, Jéssica toca na Orquestra Sinfônica da Universidade Federal da Bahia (OSUFBA) e é chefe de naipe de contrabaixo da Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA). “Estou muito emocionada em ver o caminho que o Baccarelli trilhou até esse teatro. É gratificante ver a transformação da comunidade”, diz, sem esconder que espera um convite para também tocar no novo palco.
A contrabaixista faz questão de salientar que, além da vida profissional, sua vida pessoal também “nasceu no Baccarelli”. Foi no Instituto que ela conheceu seu marido, Leandro Tigrão, com quem está casada há 10 anos. Tigrão tocava flauta na Heliópolis e, atualmente, faz parte da turnê Phonica, de Marisa Monte. O filho do casal, Murilo, de 10 anos, segue os passos do pai e já toca choro.
O Teatro Baccarelli terá um espaço para vendas presenciais – os ingressos serão vendidos preferencialmente por esse meio, antes de serem disponibilizados na internet. Por duas questões: primeiro, para dar oportunidade de compras aos moradores. Segundo, para justamente convidar o público a ir até Heliópolis, quebrando as barreiras existentes dentro da cidade de São Paulo.
Para Jéssica, não será difícil convencer quem é de fora de Heliópolis a frequentar o teatro. “Nem precisa [convencer]. Isso aqui é tão incrível! Só de anunciar que agora há um teatro como esse, a galera vai querer vir, com certeza”, diz a contrabaixista.
Ventureli diz que, mais que vontade, o público precisa exercer a humildade de assistir a um espetáculo dentro da favela. “A verdadeira inclusão social não é levar os moradores das favelas para fora delas, É trazer as pessoas que têm os poderes político, econômico e pensante para dentro da favela, para conhecer uma realidade na qual eles possam agir e transformar. Vamos trabalhar muito para que pessoas de outras regiões percam o medo e vençam o preconceito”, finaliza.
Inauguração do Teatro Baccarelli
Terça, 25
. 9h – Inauguração oficial com a presença de autoridades e apresentação do Coral Jovem e Orquestra Sinfônica Heliópolis
. 20h – Concerto oficial de inauguração com Orquestra Sinfônica Heliópolis sob regência do maestro Isaac Karabtchevsky
Primeiro show
Quarta, 26
20h Show em celebração à MPB com Péricles, Simoninha, Zé Ricardo e Orquestra
Onde fica o Teatro Baccarelli
Estrada das Lágrimas, 2317 – Ipiranga, São Paulo – SP


