‘Evolução para poucos’, diz médica sobre medicamentos como Ozempic e Mounjaro

As canetas para tratamento do diabetes tipo 2 e da obesidade, como Ozempic e Mounjaro, representam uma revolução no cuidado de pacientes com essas doenças – mas não para todos. “É uma evolução, mas uma evolução para poucos”, afirmou a endocrinologista Maria Edna de Melo no Summit Saúde e Bem-Estar do Estadão, promovido na terça-feira, 21, em São Paulo.

Para Maria Edna, integrante da Comissão de Relações Institucionais e Políticas Públicas da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), mesmo com a previsão de queda de preços, esses tratamentos não devem se tornar tão populares quanto muitos imaginam.

“Não há perspectiva de ter redução de custo que vá popularizar esses medicamentos”, disse a especialista, que também faz parte do Grupo de Obesidade do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da (HCFMUSP). “Muito dificilmente vão conseguir chegar para a população em geral.”

No Brasil, estima-se que 30% dos adultos convivam com a obesidade, uma doença crônica que aumenta o risco cardiovascular e de diversas outras doenças. Remédios inicialmente projetados para tratar o diabetes têm transformado o tratamento do quadro, fazendo os pacientes perderem peso de uma forma que antes só era possível com cirurgia bariátrica, mas eles têm custo elevado.

Maria Edna não nega a importância dos análogos do GLP-1, drogas que imitam um hormônio produzido no intestino que regula a glicose no sangue e o apetite. Pelo contrário: diz que são um divisor de águas não só no tratamento da obesidade, mas de doenças atreladas a ela, como problemas cardiovasculares e apneia obstrutiva do sono.

Mas, agregado a isso, vem o desafio do custo. Para ela, as canetas não devem se tornar acessíveis porque a tecnologia utilizada para o seu desenvolvimento e a logística envolvida até a venda nas farmácias têm alto custo.

Existem, por outro lado, perspectivas de formulações orais para tratar a obesidade, e a produção dos comprimidos não envolveria custos tão altos. Esses, sim, poderiam ser popularizados. “Mas isso ainda está em desenvolvimento e tem o período de patente, então vai levar bastante tempo (para baratear)”, ponderou.

As canetas também não são “para todos” porque não é qualquer pessoa que tem recomendação de uso. Elas foram estudadas em casos específicos: pessoas com obesidade (com índice de massa corporal, o IMC, acima de 30) ou com IMC acima de 27 (sobrepeso) junto a alguma comorbidade, como diabetes tipo 2, hipertensão arterial ou dislipidemia.

Apesar do uso amplo por pessoas que não cumprem esses critérios (e, portanto, não possuem indicação), mas têm poder aquisitivo para adquirir o remédio, a segurança dos medicamentos não pode ser extrapolada para perfis diferentes dos estudados.

“Os remédios são seguros, mas óbvio que pode ter algum efeito colateral e risco. Quando a gente põe na balança uma pessoa que realmente tem indicação, os benefícios superam muito os riscos, mas isso não é verdade para todo mundo, alguém que não tem obesidade ou diabetes”, afirmou o endocrinologista Carlos Minanni, gerente médico do Check-up do Einstein Hospital Israelita.

Uso estético

Para os profissionais presentes no painel “Nova era de combate à obesidade” do Summit Educação e Bem-Estar, o uso dos análogos de GLP-1 está banalizado, especialmente para fins estéticos, o que incorre em riscos para o paciente.

As canetas não são remédios para emagrecer, são para controle da obesidade como doença, enfatizou Minanni. “Não é para um uso recreativo ou com olhar estético”, disse. Isso pode transformar uma pessoa que não tinha um problema de saúde em alguém que possa vir a ter, ressaltou.

Minanni relatou que, como endocrinologista, atende no consultório pessoas que chegam com a demanda de uso estético. Nessas horas, contou que costuma conversar para que elas não acreditem nos discursos de profissionais que apresentam o tratamento como se fosse algo fácil, sem risco e aplicável a todos os casos. “As redes sociais potencializam isso”, comentou.

Por isso, é importante não romantizar o emagrecimento e educar os profissionais da saúde para que não prescrevam a medicação sem uma avaliação criteriosa e um acompanhamento do paciente, defendeu a nutricionista Marcela Kotait, coordenadora do Ambulatório de Anorexia Nervosa do Programa de Transtornos Alimentares do HCFMUSP.

“Se você não tem indicação clínica para emagrecimento, (usar as canetas) é algo perigoso, e as pessoas estão usando isso de forma recreativa”, alertou. “Não existe milagre no emagrecimento.”

Estigma

Apesar de ser uma doença crônica, assim como asma, diabetes ou hipertensão, a obesidade carrega um estigma. Segundo Maria Edna, a visão popular – e de muitos profissionais de saúde – é a de que se trata de falta de caráter ou de força de vontade.

“Quando a gente reduz uma pessoa com obesidade a uma pessoa que come muito e é ‘paradona’, deixa de ver quanta coisa pode estar no espectro”, disse a médica.

Muitas vezes, essa ignorância faz com que o paciente deixe de buscar tratamento, adiando o cuidado e aumentando o risco associado à doença.

“Até políticas públicas (são afetadas pelo estigma). Os tomadores de decisão não engajam quando o tema é obesidade”, criticou Mark Barone, coordenador-geral do Fórum Intersetorial de Condições Crônicas Não Transmissíveis no Brasil.

Marcela afirmou que a falsa ideia de que “é só ter força de vontade” induz pessoas com obesidade a tentarem dietas muito restritivas. No curto prazo, a medida pode funcionar, mas a sustentabilidade de novos hábitos para manter o peso depois do emagrecimento precisa vir com práticas saudáveis, que não estejam baseadas em “força, foco e fé”.

Mesmo com o auxílio de medicamentos, o emagrecimento continua passando pela melhora dos hábitos alimentares. A medicação é apenas uma ferramenta para comer menos e melhor, “porque quem tem obesidade geralmente tem uma dificuldade com quantidade e qualidade”, disse Maria Edna. Sem isso, o emagrecimento é temporário e há risco de novo ganho de peso.

Para além da saúde

Para reduzir o índice de obesidade, além de mudanças no setor de saúde, é necessária uma integração com políticas de outros setores, especialmente a indústria alimentícia.

Marcela citou a importância de uma política de preços para alimentos ultraprocessados e de lugares em que as pessoas possam caminhar de forma segura, como parques e praças.

“Precisamos criar algumas barreiras para que os ultraprocessados sejam mais difíceis de estar na mesa do brasileiro”, disse a nutricionista. “Se não facilitarmos outras coisas, as pessoas vão continuar comendo bolacha recheada e tomando refrigerante.”

Maria Edna tem visão semelhante: a população precisa ter mais acesso a alimentos saudáveis e menos a ultraprocessados. Para tanto, o Brasil deve aproveitar a oportunidade de corrigir a distorção da indústria de refrigerantes, por exemplo, que tem subsídios bilionários com o uso da Zona Franca de Manaus, disse a médica.

“Precisa ter política pública não só da saúde, isso vem lá da economia, e precisa ter coragem para fazer essas mudanças”, declarou.

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